BULL


Sabe a origem da palavra trabalho? Não é nenhum segredo. Deriva do latim tripalium, um instrumento de tortura na Roma Antiga. E assim como o Império que agoniza, mas ainda vive, o trabalho continua fiel à sua raiz etimológica.

BULL conta com três exímios especialistas nesta arte, sofisticados carrascos corporativos que transformam seus ferrões de ressentimento em instrumentos para levar um colega ao colapso. Tony, Isobel e o magnânimo Sr. Carter nos proporcionam um espetáculo de humilhação pública e o mais denso escárnio que há nos corações de respeitáveis profissionais que aperfeiçoaram a arte da tortura escolar.

E o alvo de seu trabalho é Thomas, que de alguma forma perversa, configurou como o elemento mais fraco da matilha – que deve ser eliminado através do assédio moral cotidiano e da manipulação que o mantém num constante estado de insegurança.

Embalando esta diária, Under Pressure, clássico do Queen (ft. Bowie), serve como música tema desta peça e não poderia ser mais adequado. Ela toca enquanto o elenco, de maneira enérgica e com sorrisos exagerados, dança e veste seu figurino/uniforme num preâmbulo surreal. A ansiedade que emana de seus corpos e rostos dá o tom do que está por vir.   

A expressão de angústia kafkiana de Thomas abre o primeiro ato de BULL como um coice. Um ralo das vibrações mais baixas que a emoção humana pode atingir, sugando a atenção do público e de Isobel, a única a dividir a cena com ele numa hedionda sala de espera. O cenário estéril e banal de escritório é composto por uma projeção visual estática que incide sobre o palco o tempo todo, apenas 3 cadeiras neste picadeiro de almas chifrudas.

Isobel começa a flagrá-lo de maneira invasiva e já inicia sua troça infantil acusando que tem alguma “coisa” na cara de Thomas. Você acha que tem mesmo? Ela é bem sucedida. Logo chega Tony, o terceiro componente desta equipe (terminologia corporativa que designa a unidade de pessoas que são obrigadas a trabalhar juntas e que devem se odiar passivo-agressivamente sob uma fachada de cordialidade profissional).

Eles estão reunidos naquela sala à espera do Sr. Carter, o superior encarregado da execução de bastardos verminescentes através da decapitação sumária testemunhada por seus pares, em defesa dos sagrados valores da redução de custos e da produtividade.

A demissão deve acontecer naquele local, naquela tarde, e é claro que o carrasco está atrasado. Oportunidade perfeita para que os animais maiores possam atormentar o vulnerável Thomas, cuja postura defensiva e traumatizada carrega as marcas dos dias úteis em companhia de seus colegas.

Tony ostenta toda a arrogância e escrotice de um autorreferido macho alfa de gravata. O odor é palpável. Isobel é bela e cruel, letal e debochada em quase todas as suas colocações. Juntos eles se mancomunam na destruição sistemática da autoestima do colega de equipe.

Sucede um festival de ridicularizações, provocações, mentiras e ataques pessoais regados a risadinhas e melodramas fingidos. Afiando seus chifres no desespero cada vez mais exacerbado do mancebo acuado, estes reis do bullying criam situações absurdas e o enfiam em uma câmara de gaslighting.

Excluído do networking no happy hour das quintas feiras, briefings ocultos e deadlines que não foram informados de propósito são apenas alguns protocolos do tripaliare dos colegas de Thomas, para sabotar sua performance e o levar à beira de um burnout paranoide.

Frágil como um cristal na beira da mesa sob o olhar de um gato atentado, sua situação se torna cada vez mais crítica e dolorosa de se ver – cringe, como definiria nosso vocabulário atual, hibridizado pela atualização nas definições de colonização da linguagem e da mente.

Neste circo desenfreado de tensões, a chegada do Sr. Carter tem o efeito de transformar a todos em adestrados espécimes subservientes. Com o chicote da autoridade organizacional, ele instaura uma ordem temporária naquela atmosfera bélica – a projeção já não é mais estática, ela transmuta o cenário, que começa a distorcer, tornando-se avermelhado e cada vez mais caótico, de acordo com a esfera emocional dantesca nesta sucursal do inferno chamada empresa.

O ridículo da relação paternal que é forçada em tais ambientes corporativos em relação à figura do chefe se torna hilária com a atuação do elenco, que expõe o teatrinho tosco dos cargos e dinâmicas empresariais pela audácia da caricatura. Mais sobre ela no final do texto.

Sr. Carter ostenta a fachada da ética e da empatia, da imparcialidade empresarial e do culto à eficiência. Ele se irrita com a dinâmica escolar de seus subordinados, mas é ele mesmo um bully implacável, o mais letal. Educado nas artes da pretensa superioridade hierárquica e moral, ele salta neste coliseu kitsch para executar sua missão de arrancar de algum deles algo mais precioso que a vida: o emprego.

Eis que nos aproximamos dos atos finais e esta crítica não vai entregar o desfecho da trama. Contei até demais, excedendo o número de caracteres que qualquer rede nos condiciona a aturar. Neste momento devo cumprir a obrigação de saudar a diretora Laura Haddad e a parabenizar pelo trabalho fulminante, por ter mantida acesa, desde antes da pandemia, a chama da ideia desta montagem, que encontrou um momento certeiro para estrear.

As atuações de Rodrigo Ferrarini como Thomas, Carolina Meinerz encarnando Isobel, George Sada de Sr. Carter e Sidy Correa fazendo Tony, são um tanto assustadoras. Assombrosas. Awe talvez seja a expressão em inglês que mais se encaixa. Absurdamente realistas, intensamente precisos na entrega de um texto que respinga uma crueldade necessária.

Também se faz caro apreciar o sempre delicado trabalho de tradução, feito aqui por Luci Collin para adaptar a peça do dramaturgo inglês Mike Bartlett, que teve a sorte de contar com uma equipe tão voraz e comprometida para montar BULL nas terras de cá. Sincera gratidão à equipe técnica pela excelência a e todas as pessoas que tornaram possível a realização desta obra. 


E voltando à história da caricatura, não é também caricato que o monumento símbolo do mundo corporativo é um touro (Bull) de bronze no meio de Wall Street? O distrito financeiro no coração de New York que extende suas cordinhas sobre todo o teatro da economia global. Este bull também me é reminiscente da adoração de ídolos já denunciada por Moisés, e também do touro de bronze que recebia pessoas em seu interior para serem cozinhadas vivas, um dos métodos mais cruéis de tortura e execução da história segundo a Wikipédia.

BULL me faz pensar que de alguma maneira estes touros continuam a nos enganar e nos torturar com seu bullying perene. Seus métodos agora são mais sofisticados, com o soft power neoliberal que prolifera uma cultura profissional da competitividade homicida, que amola as facas dos nossos instintos mais baixos e inseguranças mais frágeis para aumentar a margem de lucro dos acionistas.

Esta visão de mundo espalha pelo planeta matadouros de almas com slogans fofos e um marketing tão refinado que às vezes nos faz acreditar que são benéficos e necessários. Neste cenário parasitário de precarização da vida e sacralização do lucro, BULL me faz lembrar de algo muito importante, uma afirmação ousada e insurreta, que pulsa de maneira reprimida no coração de toda pessoa que já viveu as bençãos do mundo profissional:
EU ODEIO O TRABALHO!

 

 

Crédito das fotos: VITOR DIAS.