Das relações com a ditadura, da vida e contradições do maior nome da literatura argentina
Em passo ligeiramente apressado pela calle Serrano rumo a uma loja de produtos à base de cannabis que estava prestes a cerrar suas portas, no largo (plaza) de mesmo nome — onde a feirinha de sábado via a tarde cair aos poucos, sob o adocicado perfume dos jacarandás já em flor — atrás de um casaco training bacana que encomendara de véspera com uma vendedora simpática.
À pressa serena e a proximidade do local no qual Jorge Luis Borges viveu seus primeiros anos, juntavam-se dois pensamentos contíguos e divididos. Um: quanto Buenos Aires tem um cheiro doce; dois: “por que ele fez aquilo, agiu daquela forma?”.
Estávamos às vésperas do primeiro turno da eleição, e as entranhas da política argentina já davam vistas havia algum tempo, desde que estávamos lá. Tevê, rádio, as ruas, comícios, passeatas, cartazes de campanha por todo lado.
A memória foi longe, e para o passado. Em agosto de 1976, Borges estava prestes a completar 77 anos. O autor de Ficções, inadvertidamente, vivendo em um apartamento pequeno no centro da capital, estava rapidamente se tornando um mito nacional. Não que já não fosse absoluto, inclusive internacionalmente. Mas ele estava agora (1976) no patamar de Gardel e Evita. Mitos que sempre detestou, ao contrário dos personagens da mitologia clássica, dos livros, que adorou por toda uma vida — e outras, por se tratar de Borges.
Desde o golpe de estado que depusera Isabela Perón em março daquele ano, o culto local a Borges atingiu dimensões jamais vistas. Pouco depois do golpe, o novo chefe de governo, general Jorge Videla, convidou o escritor para almoçar. Inacreditável. Aquela foi apenas uma das inúmeras homenagens que vinham-lhe sendo conferidas ao longo do período. Quase todas as semanas recebia prêmios, comendas, jantares e regabofes de diversos círculos culturais e literários, clubes e até de governos estrangeiros. Sua foto frequentemente adornava capas de revista, os jornais estampavam suas viagens e atividades como se ele fosse um jogador de futebol craque do time após ganhar a copa do mundo.
Corte para nossa caminhada sob os jacarandás de Palermo: “por que ele fez aquilo?”. Antes de enlouquecer com Borges acerca de suas posições políticas, é mister que se faça, digamos, enlouquecer por ele primeiro. O leitor iniciante pode encontrar uma entrada edificante e repleta de sedução através dos contos coletados em Labirintos (1962) ou no referido Ficções (1944). É uma boa introdução.
O contador de histórias na prosa incidental de Borges não é uma ilusão, uma alegoria. Vai ao âmago de sua visão de mundo. Ensaios e diálogos transformam sua vasta aprendizagem em uma aventura intelectual que certamente emociona há décadas jovens leitores com a cabeça aberta para encontrar aqueles universos paralelos, como ele pretendia, se é que de fato pretendia. É possível dizer que ele criou um país de fábula, por fabuloso que é. Então, será por isso fez aquilo?
Naquele ano de 1976 — o fatídico — para além das notas e manchetes de jornal, o culto a Borges, a exemplo de seus universos inventados, gerou um novo gênero que pode ser chamado de obras de “literatura paralela”, algo assim… “sobre Borges”. Há bibliotecas inteiras que dá pra fartar de livros apenas com ensaios, entrevistas, conferências, palestras, aulas, diálogos dos quais o escritor participara naquele tempo específico.
Katherine Singer Kovacs escreveu em seu artigo de 1977 na Boston Review (Borges on the Right), aqui em tradução livre e irresponsável, sobre como se dava tal fenômeno: “o seu formato é invariável, enquanto um entrevistador indulgente faz perguntas respeitosas, o autor divaga sobre uma variedade de assuntos que vão desde a literatura inglesa, às suas viagens, às suas preferências políticas. Depois de ler duas ou três dessas entrevistas, é fácil prever exatamente o que Borges dirá e até mesmo que palavras ele escolherá para ilustrar seus pontos de vista. Tem-se a impressão de que o mesmo material está sendo reciclado em resposta ao novo interesse que despertou”.
Mas, em que pese seu “autismo de biblioteca”, Borges não viveu em tais universos paralelos, seja os que criou ou dos livros que leu. Não passou sem cobrança o almoço com o ditador assassino. Nem a posterior homenagem que recebeu de Pinochet no Chile. Mesmo nos incensados últimos anos de sua vida, já cego, nunca deixou de haver vozes entre seus pares prontas para lembrá-lo de que ele poderia (e deveria) ter se esforçado mais para usar… os ouvidos! A sua posição política pretensamente isenta (o cacete) não foi poupada, mesmo por aqueles que admiravam incondicionalmente a sua arte. Ao contrário, antes questionavam o seu relaxamento num momento em que seu país estava dominado pelo terrorismo de estado.
Cercado de horror por todos os lados, Borges ou não tinha notado (ah, tá) ou não sabia alguma coisa sobre “aquilo”, e imaginou que poderia ser desculpado, talvez. A ideia de que seu isolamento político poderia ser perdoado, talvez por vir imposto através de um ambiente ao redor composto por extremos — os Montoneros também não eram brincadeira, diga-se e constate-se — ele poderia muito bem ter detectado a atmosfera e imposto algo mais digno à sua consciência.
O escritor tinha bons motivos — mais que urgentes — para sugerir, mesmo em delírio em meio à cegueira e repleto de “sons estranhos” ao redor, que o que estava acontecendo na Argentina tinha, vá lá, pouca importância. Vai ver sua primeira lealdade era para com o universo. Mas que mundo é esse em que se vão a justiça, a verdade, a fraternidade?
Daquele almoço infame também participou Ernesto Sábato, um dos contemporâneos mais eminentes de Borges. Sábato disse sobre o colega: “do medo de Borges da amarga realidade da existência surgem duas atitudes simultâneas e complementares: existir em um mundo inventado e aderir a uma teoria platônica, uma teoria intelectual por excelência”.
Na Buenos Aires do pós-guerra havia duas vozes literárias incontestáveis, aos olhos do mundo: Borges e Sábato. Parte da elite cultural de uma cidade espetacularmente bela, ambos ficaram cegos nas suas vidas posteriores. Estavam ligados por tal fatalidade e pela literatura maravilhosa que produziam. Mas eram separados em espírito.
Os romances de Sábato retratavam horrores do mundo real e conduziam a coisa ao fantástico. Para Borges, em via contrária, o passado próximo quase não existe. Dá pra dizer que é como Buenos Aires: avesso, ou desprovido, de contemporaneidade. Como escreveu Clive James sobre a “cidade política de Borges”: “é uma cidade hierática como o cemitério da Recoleta. Antes de ficar cego, ele andava pelas ruas apenas à noite, para minimizar a chance de realmente encontrar alguém. Em suas histórias, os momentos de paixão, medo, piedade e terror pertencem ao mundo há muito desaparecido dos lutadores de faca. Esquadrões da morte e tortura não estão no inventário. A escala de tempo termina pouco depois de ele nascer. Por que ele se escondeu?”.
Por que ele fez aquilo? Alguns motivos plausíveis: Borges era conservador, certo. Sempre odiou Péron, e a lembrança de que o guarda-costas de Evita era o mesmo agente predileto de Hitler que salvou Mussolini do cativeiro — o austríaco Otto Skorzeny, lhe dobrava a repulsa. Borges sempre odiou o nazismo. Temia que o acolhimento de Péron aos nazistas refugiados fossem uma séria ameaça à comunidade judaica da Argentina. Por extensão, é natural que Borges também odiasse o stalinismo. Vamos ficar por aqui porque essa ladainha em 1976 já não podia mais colar. Não estamos lidando com ogros do pampa gaúcho tão bem retratados e admirados por Borges em diversos textos geniais. Estamos nos referindo a um dos maiores intelectuais de sua época e de todos os tempos. Quanto ao passado, ele já era bem mocinho em 1933. Não cola.
Amenizando: Borges mudou de ideia em breve, ainda em plena ditadura, ao ser procurado por duas mães de filhos desaparecidos pela ditadura de Videla, que o demoveram de qualquer apoio ao regime. E junto a Bioy Casares engrossou as fileiras de um pedido formal, por escrito, exigindo informações acerca do paradeiro ou destino daquelas pessoas, a quem deram nomes e exigiram uma solução. Parece pouco, mas foi o bastante para a junta militar balançar do alto de seu poder. Na Guerra das Malvinas, já em 1982, Borges então condenava completamente o governo ilegítimo e criminoso.
Jorge Francisco Luis Borges de Acevedo nasceu em Buenos Aires, em 1899. Quando viveu em Palermo (1901-1914), sob o aroma dos jacarandás em flor, praticamente não saía da biblioteca de seu pai. Em 1914, sua família se mudou para a Suíça, e na Europa o jovem Jorge Luis viajou bastante e conheceu a Espanha, especialmente. De retorno a Buenos Aires, começa a escrever, traduzir, editar e publicar em 1921. Nunca mais parou. Viveu por quase todo o século 20, um século que é possível dizer que ajudou a moldar. É um dos maiores escritores de todos os tempos. Ficou cego aos 55 anos, enquanto lia um romance policial — narrativa que apreciava — dentro de um trem que, ao passar por um túnel, quando saiu não deu mais luz a Borges. Morreu em Genebra, em 1986.
“Eu não soube administrar minha vida, então não posso dirigir a vida dos outros. Minha vida foi uma série de equívocos. Não posso dar conselhos. Ando um pouco à deriva. Quando penso no meu passado, sinto vergonha. Eu não transmito mensagens, os políticos transmitem mensagens.”
(J.L. Borges)
Já amenizamos demais para outros engraçadinhos brilhantes que flertaram com o fascismo, mesmo que por tabela, sob pretexto da arte que cometiam. Céline, Pound, Dalí. Já passamos da fase de “separar o artista da obra”. Estávamos em 1976, senhor Jorge Luis! Por que fez aquilo?
O fato é que há uma Argentina em Borges. Paradoxal, contraditória, como Gardel, Péron, Maradona e o tango. Era um janota. Detestava futebol. Detestava jogos. Polemizou com o tango cantado e com a música de Piazzola, instrumental. Assim, foi construído o tal mito, como nos universos paralelos que aventou em diversas obras. Outra geometria, outros mapas, continentes, outros cálculos. Vamos parar por aqui.
Estamos em 2023. E um maluco se avizinha apossar-se da Casa Rosada, como aconteceu com o Alvorada em Brasília há pouco, nos quatro anos mais tristes da história recente. Afinal, o Brasil também é repleto de contradições e peculiaridades. Nosso maior ícone literário é um mulato autodidata; nosso maior expoente do samba é um branquelo estudante de medicina. É brincadeira? Não, é Brasil.
Imperdoável quem tem estofo intelectual e apoia qualquer espectro de extrema direita, em nome de qualquer liberdade econômica ou aversão ao comunismo que se tenha. Sobremaneira. Não em 1976. Não agora. Nunca mais.
Quando chegamos à plaza Serrano e adquiri por fim meu casaco à base de cannabis, desejamos em descarado portunhol buena suerte à moça simpática da loja na adorável feirinha — ela era de esquerda.
Os passos já deixaram de ser apressados. Em meio àqueles pensamentos divididos, a atitude sensata foi sentarmo-nos a uma mesa no Reencuentro, na esquina das calles Armenia e Cabrera, já menos cabreiro com o contador de histórias de O Aleph. Vamos. Chorizo! Vino! E voltamos às piadas de quinta série que adoramos.
O malbec desceu como néctar, e a morcilla veio derretendo.
Por que ele fez aquilo? Dane-se. Como é doce o perfume de jacarandá em Buenos Aires.
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Imagens: reprodução