Bob Marley & The Wailers. A revolução de dentro da ilha


Rastafári, política, maconha e toda mística que cercou o gênio do reggae. Morto há 41 anos, sua obra ainda é vibrante

Em 1971, Robert Nasta Marley — um jovem jamaicano que gravara quatro álbuns com sua banda The Wailers em Kingston, e atendia por Bob Marley — estava em Estocolmo a convite do americano Johnny Nash (autor do hit I Can See Clearly Now, famoso posteriormente na voz de Jimmy Cliff). O projeto de Nash era para um filme. A coisa não rolou.

Marley, de toda forma, se viu pisando solo transcontinental com boa chance de emplacar por lá, e convidou o resto de sua banda para um “rolê” pela Europa. A banda era composta por Marley (guitarra e vocal), Peter Tosh (guitarra e voz), Bunny Wailer (percussões) e também pelos irmãos Aston e Carlton Barret (baixo e batera respectivamente).

A mini tour dos Wailers não deu lá muito certo financeiramente. Os músicos se viram perdidos e sem grana em Londres. Bob resolve bater à porta de Chris Blackwell, produtor e executivo proprietário da Island Records. Apresentou-lhe uma fita, prometeu um álbum, recebeu um adiantamento e conseguiu o dinheiro para que o grupo voltasse a Kingston.

Na Jamaica, até aquele período, o mercado musical era basicamente de singles, ou pequenos discos de vinil em compactos com uma música de cada lado. Quando se lançava um LP tratava-se apenas da reunião de vários singles relançados em um único disco. Os produtores e os estúdios eram uma espécie de máfia de picaretas. Ficavam com toda grana dos discos e os artistas eram obrigados a se virar pelos bailes da vida em uma ilha que vivia basicamente do turismo e alguma agricultura.

Muito provavelmente toda essa dificuldade para a montagem de grupos musicais, aliada a uma inacreditável e fértil criatividade natural dos jamaicanos, levou a desdobramentos diversos. Apresentavam-se em pequenos trios, acusticamente ou — aí entra a “coisa” que faria a diferença no mundo — na condição de DJ, tocando mecanicamente nas festas diversas do deslumbrante e pequeno litoral da “Pérola do Caribe”. Os caras eram muito criativos.

Um desses DJs, também engenheiro e “rato de estúdio”, chamado Lee Perry, foi um dos inventores daquilo que veio a se chamar “dub” — uma forma de remix, no qual se retirava uma parte dos vocais, sobrepondo baixo e bateria, incluindo efeitos sonoros diversos em camadas, formando uma massa sonora única e pulsante. O dub já agitava os bailes, bares, rádios e “lados B” daqueles compactos havia algum tempo, desde a segunda metade da década de 1960. Era algo muito peculiar e rolava só na Jamaica.

Quando os Wailers desembarcam em Kingston, Bob Marley vai direto a Lee Perry, cheio de ideias. Em 1972, uniram equipes e forças do gênio Perry. Utilizaram três estúdios e gravaram Catch a Fire (Island, 1973), sob a produção de Chris Blackwell e do próprio Marley. O primeiro disco dos Wailers pensado como um álbum.

Bob Marley & The Wailers estouram no Reino Unido, onde o reggae já contava com adeptos diversos desde meados da década de 60, devido à imensa comunidade jamaicana em território britânico, e também junto aos skinheads originais, do final dos 60’s, que promoviam bailes e festas regadas a ska (ritmo que precedeu o reggae) e a diversidade racial da classe operária.

Clássico absoluto da música universal, Catch a Fire invadiu ainda a América e espalhou a cultura reggae pelo mundo. A partir deste êxito, todo um folclore começa a girar em torno das figuras exóticas dos membros da banda e em especial de seu líder. Dreadlocks ainda não eram comuns, mas já despontavam timidamente nas cabeças dos Wailers. Até que os dreads cresceram, e em entrevistas algumas perguntas sobre as indumentárias e hairstyle trouxeram à evidência pela primeira vez fora da Jamaica o “rastafári”

O rastafarianismo, ou religião rastafári, ou somente movimento rastafári, foi um fenômeno da segunda metade do século 20 que misturou elementos religiosos, políticos e musicais em torno da figura de Haile Selassié I (1892-1975) — imperador da Etiópia de 1930 e 1974. Selassié considerava-se herdeiro direto do rei bíblico Salomão e da Rainha de Sabá. Pela tradição etíope, uma dinastia de Salomão se formou na região, onde seus descendentes reinaram durante a Idade Média. Seus seguidores consideram Selassié o próprio Jah, corruptela da palavra Javeh, o próprio Deus. Trocando em miúdos: um delírio completo.

Mas Selasié era carismático e boa pinta. O monarca ficou conhecido mundialmente em 1936, quando discursou para os representantes da então Liga das Nações (embrião da ONU) a respeito do avanço das teorias de inspiração racista e dos conflitos na Europa que acabariam resultando na Segunda Guerra Mundial. Sua postura contra a violência fez com que ele recebesse a denominação de Ras Tafari, que significa “príncipe da paz” em tradução pra lá de mais-ou-menos. Um trecho do discurso na Liga em 1936:

“Enquanto a filosofia que declara uma raça superior e outra inferior não for finalmente e permanentemente desacreditada e abandonada; enquanto não deixarem de existir cidadãos de primeira e segunda categoria de qualquer nação (…) os sonhos de paz duradoura, cidadania mundial e governo de uma moral internacional irão continuar a ser uma ilusão fugaz, a ser perseguida mas nunca alcançada”.

Pois bem, os negros jamaicanos de meados do século 20, todos descendentes de escravos, viam na figura solene de Selassié — naquela época o único rei soberano do continente africano — um messias. Isso foi-se espalhando como tradição entre a população da ilha, predominantemente pobre, e tomou ares folclóricos.

Marley compôs a música War (Guerra) inspirado no discurso de Selassié. A vestimenta tradicional, mais larga e com tecido de algodão colorido, além do uso de dreadlocks nos cabelos, e aquelas toucas de lã feitas de crochê, também constituíam a estética rastafári.

Outras características do rastafarianismo são os hábitos alimentares.  O consumo de vegetais, leguminosas, frutas, a abstenção do álcool e — é claro — o uso de marijuana, a popular maconha, que era consumida em verdadeiras charolas em formato cone de um palmo de comprimento. Como em qualquer seita, eles dizem que todo este fundamento pode ser encontrado em um livro sagrado, no caso a Bíblia, em passagens do Antigo Testamento.

Politicamente, os rastafáris se alinham com Israel, uma vez que são descendentes de Salomão. Essa parte, apesar de ser a mais picareta de todas, faz sentido. Há alguns anos, o governo de Israel autorizou o ingresso no país de judeus da Etiópia, de longa linhagem, considerados cidadãos israelenses pelas leis do país, portanto.

Bob Marley era um gênio, junto com seus amigos revolucionou a forma de se fazer música em todo mundo. Um modus operandi na produção musical que passou a incluir com relevância idêntica aos instrumentos também os amplificadores, e principalmente a ilha de edição, onde estes jamaicanos operaram milagres da mais fina flor rítmico-melódica de toda história. O segredo estava todo em uma ilha, desde sempre.

Marley tinha posições e presença políticas fortíssimas. Em 1976 sofreu um atentado no qual sete homens armados invadiram sua casa e atiraram em sua mulher, nos Wailers e nele, no meio do peito. Dispararam mais de 80 tiros pela casa toda. Inacreditavelmente, ninguém morreu. Apesar de Marley estar envolvido nas eleições jamaicanas daquele ano, até hoje o crime segue insolúvel, sem que se saibam os motivos.

Vivia em Trenchtown, a maior favela de Kingston, onde reza a lenda que mandava e desmandava feito um chefe de facção nos moldes que conhecemos no Rio de Janeiro. Foi acusado posteriormente de machismo e abuso por várias de suas ex-mulheres. Comprou uma BMW (Bob Marley & The Wailers, enfim). E fumava muita maconha.

A crença cega na filosofia rastafári acabou lhe custando a vida. Logo após retornar do Brasil, em 1980, onde jogou bola com Chico Buarque, Toquinho, Paulo Cezar Caju e toda turma da gravadora Ariola, em momento que ficou eternizado em fotos, foi diagnosticado com um câncer. Pela filosofia de Jah, recusou tratamento. Faleceu em 11 de maio de 1981, em Miami, nos EUA. Tinha 36 anos.

O clássico Catch a Fire — que teve a capa do “isqueiro” e a “alternativa”, na qual Marley aparece com um baseado enorme na boca — e todos os álbuns de Bob Marley & The Wailers são fundamentais.

Seu legado é absolutamente imensurável.

Ouça. Leia. Assista:

Catch a Fire (1973) – Bob Marley & The Wailers

Queimando Tudo – A biografia definitiva de Bob Marley

O que há por trás do mito Bob Marley – por Diego A. Manrique, El País