Movimento colocou artistas negros como protagonistas e traçou novos rumos para a indústria do cinema
Estamos em 1971 e você está no cinema assistindo a um filme no qual o detetive John Shaft enfrenta dois grupos de mafiosos rivais. Ele é negro, e o mocinho. É interpretado por Richard Roundtree. É contratado por um chefão da máfia (interpretado por Moses Gunn) para encontrar sua filha sequestrada. Os policiais — maus via de regra — são brancos. A trilha sonora é de Isaac Hayes, e apresenta o melhor da soul music, r&b e funk com orquestrações e arranjos virtuosos.
O filme é Shaft, de Gordon Parks, o primeiro negro a dirigir um filme com qualidade e repercussão no mainstream norte-americano. Todo contexto acima pode parecer comum nos dias de hoje, mas tratava-se de fato da primeira vez em que uma obra cinematográfica colocou tanta gente preta envolvida no comando de sua realização. Da produção à trilha sonora, passando pelo elenco, tudo era majoritariamente negro. E para o público negro. Em bairros negros, com causa e temática negra.
Shaft custou 500 mil dólares. Arrecadou 12 milhões nas bilheterias. O sinal estava dado. Havia mercado para a temática black na América, e no mundo. Shaft foi uma das primeiras produções de um gênero que nascia. Naturalmente, um movimento: a Blaxploitation. O termo é irônico e foi cunhado por Junius Griffin, produtor e presidente da NAACP (National Association of Colored People). Uma junção das palavras black e exploitation (exploração, no sentido mercadológico). O movimento é objetivamente étnico, e coloca o negro como protagonista em filmes que viriam as explorar vários gêneros. Geralmente policiais noir, mas também artes marciais, tribunal, musical, comédia e até horror. De brinde, Isaac Hayes recebeu o Oscar por melhor trilha original, sendo o primeiro negro não-ator a ser contemplado com a premiação.
Eram produções baratas, com tramas pra lá de flagrantes e já clichês, em cenas de luta e tiros, sem grandes revoluções em seus roteiros, e atuações que podemos situar entre o exagero e a canastrice. Nada muito diferente do básico da Hollywood historicamente branca. Mas havia, além do protagonismo negro, outra grande diferença, muito marcante: a trilha sonora era composta por alguns dos melhores músicos daquela geração. Que obviamente eram negros. Curtis Mayfield, Willie Hutch, Bobby Womack, Marvin Gaye, James Brown, Quincy Jones, Barry White e o já citado Isaac Hayes, entre eles. As cenas de perseguição e luta eram marcadas por baixos fortes e funkeados com guitarras abusando de efeitos wah-wah, baterias e percussões frenéticas, acompanhados não raro de orquestras de violinos, sopros e violoncelos que vieram também a compor a produção musical da época, muito especialmente a disco music ainda emergente, que explodiria lá por 1977.
Até 1976 consta que cerca de 200 produções Blaxploitation foram lançadas. Além de Shaft, alguns clássicos são bastante lembrados, como Sweet Sweetback’s Baadasssss Song (Melvin Van Peebles, 1971), Superfly (Gordon Parks Jr., 1972), Blacula, o Vampiro Negro (William Crain, 1972), Coffy: Em Busca da Vingança (Jack Hill, 1973), Willie Dynamite (Gilbert Moses, 1973), Cleopatra Jones(Jack Starret, 1973), Bucktown (Arthur Marks, 1975) e Black Samurai (Al Adamson, 1977).
Como é possível notar, havia diretores brancos por trás das produções também, como Jack Hill e Al Adamson, elencados no parágrafo de clássicos acima. O negócio de fato cresceu e foi além, influenciando todo o mercado. Situações típicas de Blaxploitation foram utilizadas em filmes de outras vertentes, como Operação Dragão (Robert Clouse, 1973), estrelado por Bruce Lee e o campeão de caratê Jim Kelly, astro da Blaxploitation, que tem trilha de Lalo Schinfrin utilizando-se do ritmo funk das produções negras. Outro exemplo é 007 Viva e Deixe Morrer (Guy Hamilton, 1973). E basta assistir a qualquer filme dirigido ou protagonizado por Clint Eastwood no período. Dirty Harry ou Magnum Force, por exemplo, contam com todos os elementos da Blaxploitation, muito especialmente — e sempre — na trilha sonora. O mesmo pode-se dizer da série de três longas Desejo de Matar, com Charles Bronson. O segundo longa da série, a propósito, tem trilha de Jimmy Page, guitarrista do Led Zeppelin.
O impacto da Blaxploitation foi além. Superfly tornou Curtis Mayfield mundialmente conhecido e ajudou a consagrá-lo como um dos maiores nomes da black music de todos os tempos. O soundtrack do filme é considerado um dos maiores discos da história, em qualquer lista. Um número nunca antes visto de artistas negros ascenderam à condição de estrelas nos anos 80, como Denzel Washington, Whoopi Goldberg, Hale Barry, Spike Lee, Eddie Murphy, Viola Davis, Forest Whitaker, Danny Glover, Will Smith e Samuel L. Jackson. Quentin Tarantino, um fã declarado do gênero, prestou seu tributo em Jackie Brown (1997).
Como tudo que envolve raça ou gênero causa espécie, nada foi fácil ou passou batido. Houve, dentro do próprio movimento negro, quem achasse as produções prejudiciais à luta e às causas antirracistas, que desde os anos 1960 ferviam a América num caldeirão bastante explosivo, de diversas conquistas e muito conflito étnico e político. A associação do homem negro como supermacho sexual, bruto, violento, portando armas e durão não parecia ajudar aos olhos de quem estava no olho do furacão da militância tida como “séria”. Bem como a associação de mulheres negras a todo esse universo, nos papéis a que o policial noir e filmes de artes marciais reservam a elas normalmente, submissas, sexualizadas ou coniventes. Também pesou sobre os filmes a questão da qualidade. Os críticos mais ferrenhos não as consideravam à altura do melhor da sétima arte.
Mas aí a música entra em cena novamente e salva a pátria. No way, man. Sem chance. Aquilo era realmente de primeiríssima. Tudo o mais é cinema. That’s entertainment. E graças à Blaxploitation gênios como Spike Lee, Steve McQueen e Jordan Peele, entre muitos outros, desfilam já há mais de quatro décadas sobre os tapetes vermelhos de Veneza, Berlim, Cannes e Los Angeles.
Black lives matter, dentro e fora das telas. E faz tempo. Sem derramar uma gota de sangue.
…
Ouça. Leia. Assista:
Blaxploitation Cinema: The Essential Reference Guide
Shaft (1971) – trailer
Curtis Mayfield Superfly – full album
…
Imagens: reprodução