Empresário e produtor montou o maior império da black music da história. Mais que isso, gravadora definiu novas diretrizes para a música popular do mundo todo
Berry Gordy Jr. tinha 26 anos quando desembarcou sob o céu acinzentado de sua cidade natal Detroit em 1953. Vinha da Guerra da Coreia, na qual estava servindo ao Exército desde 1951. Recebeu um auxílio de seu pai (e de outros 7 irmãos) no valor de 700 dólares e, de casamento marcado com a jovem Thelma Coleman, empreendeu em uma loja de discos chamada 3-D Record Mart.
O negócio não vingou. Gordy fecha as portas em 1955. Dali, como todos em sua cidade, vai trabalhar na Ford, uma das fábricas que movem a economia da “Motor City”. Havia ainda a Chrysler e a General Motors. O setor automobilístico empregava cerca de 300 mil pessoas dentro de um universo populacional de mais ou menos um milhão naquela década. Era o american dream a todo vapor (motor a explosão, no caso), estabelecendo cultura e impondo assim aquele way of life para o mundo todo. O mundo dos brancos, machos e adultos, diga-se.
Gordy era preto. Homem, já não era tão jovem para os padrões da época. Mas tinha a música na alma. Enquanto trabalhava como operário, manteve sua paixão e escrevia volta e meia canções para concursos da região. Em 1957, teve uma parceria com sua irmã Gwendolyn (Reet Petite) gravada por Jackie Wilson. Deixa o emprego na fábrica.
Em 1959, já dirigia o grupo The Miracles, quando foi aconselhado por Smokey Robinson a montar uma gravadora dedicada exclusivamente à música negra. Mal sabia que o seu “sim” ao conselho do amigo viria a mudar o mundo inteiro para sempre.
No mesmo ano, comprou um apartamento para duas famílias no número 2648 da West Grand Boulevard. Muda-se com sua recém-formada família (ele e a esposa) para a unidade superior, transformando o térreo em uma unidade de gravação, que viria a ser apelidada de Hitsville U.S.A.
A gravadora se chamava inicialmente Tammy Records. Daí Tamla, e paralelamente Gordy tinha um projeto chamado Motown. O nome é óbvio e homenageia a “Motor City” (Motors Town – Motown). O pequeno prédio Hitsville U.S.A. torna-se a sede física da novíssima gravadora.
A partir deste ponto, Gordy ladeou-se de imensos artistas que se apresentariam a ele e sua equipe. Começariam a formatar algo que ficou conhecido como o “som da Motown”. Foi natural. Era parte do soul, com instrumentos de rhythmin & blues e vocais de “bate e volta”, com vocal e backing, aquela jogada que vem do gospel. Aos poucos foram montando um grupo de estúdio que denominou-se Funk Brothers. E estava feito.
Além dos Miracles e Smokey Robinson que já estavam por ali, uma certa Diana Ross e seu grupo The Supremes entrariam os 1960’s com tudo. E um garotinho (o primeiro) cego de nome Stevie Wonder começaria a mudar conceitos muito mais aprofundados dentro do universo que já era conhecido então como “black music”. A cultura negra enfim era parte da contracultura que começava a mudar o mundo. E havia um mundo funk.
Berry Gordy enriquece. The Temptations, The Four Tops, Mary Wells, Drake Bell, Martha Reeves, Gladys Knight and The Pips. E havia Marvin Gaye.
Não é preciso dizer que, a exemplo de todo homem negro na América, com ou sem grana, Gordy já tinha problemas demais. Até o dia que Gaye, até então uma das melhores vozes do cast da Motown, um exemplo de sucesso do “som Motown”, resolve meter o bedelho em política. Não havia como não acontecer isso. Seu irmão voltara transtornado do Vietnã. Marvin Gaye sentiu no sangue do seu sangue o trauma de guerra. What’s Going On (1971) muda os parâmetros e a ótica da Motown.
Gordy reagiu ao álbum revolucionário de Gaye, claro. Gravado à sua revelia. Não queria encrenca pro seu lado. Mas não por muito tempo. Sua irmã Anna Gordy o convence e ele libera What’s Going On ao mundo. Os horizontes se abrem. Naquela altura o “garotinho” Stevie Wonder já estava alçando voos muito mais altos e tais e quais atentos às questões sócio-políticas que ferviam o período, e iria em seguida com Innervisions (1973). O funk era imparável. E um outro fenômeno já dava as caras na Hitsville U.S.A.
Os filhos de Joe Jackson, um grupo de cinco garotos de Gary, Indiana, agitavam desde 1968 nos corredores da gravadora. E o garotinho Michael (o segundo “golden boy” da empresa) daria mais uma guinada no som da Motown.
The Jackson Five torna-se o maior sucesso de vendas da empresa. Ganham merchandising de todo tipo, o que incluiu até um desenho animado de grande sucesso. Ao fim dos anos 1970, e pelo começo dos 80’s, Michael Jackson se tornaria o “rei do pop”.
A importância da Motown é impossível de se medir. Revolucionou o modo de tocar e produzir música, criou estilo próprio e patrocinou dezenas de artistas de sucesso durante os anos fundamentais da música no mundo, 1960 e 70. Viu nascer o rap e o pop eletrônico de dentro de suas entranhas. No cinema, certamente não fosse a Motown não teríamos A blaxploitation e Spike Lee, pra dizer o mínimo.
Hoje, a pequena e pitoresca casa que ganhou o apropriado nome Hitsville U.S.A. é sede do Motown Museum, em Detroit. A “firma” foi pra outro espaço, bem maior, ainda em 1969.
Na terra dos motores, Berry Gordy meteu o pé no acelerador das vitrolas da Terra. Faz um planeta inteiro dançar desde então. Estamos em 2022 e ele vive feliz, aos 92 anos. Segue firme o velhinho.
Mudou as cores da música. A cor do som e da pele. Colocou no mapa da fortuna pop a gente que a protagoniza e produz de forma mais brilhante. Até hoje. Black.
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Ouça. Leia Assista:
The Sounds of Young America – History of Motown
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