Azul-espanto


Encontrei essa definição de cor em um texto do José Eduardo Agualusa, na seguinte passagem: “O céu está limpo – embora o horizonte se mantenha negro, cortado. Vez ou outra, pelo brusco clarão de relâmpagos – e reluz como uma larga folha de papel de cera azul-espanto”. O trecho está no livro “Os vivos e os outros”.

Azul-espanto. Fui fisgada por essa cor, sem poder encontrá-la na minha paleta consciente, até que a memória me deslocou para uma cena que eu descrevi recentemente para um amigo. A insistência e a surpresa advinda com o nome da cor me proporcionou um deslocamento temporal (outro nome para trovoada, lá de onde eu venho): eu estava no carro com a minha mãe, fazendo o trajeto Pomerode-Blumenau depois do aniversário de uma tia-avó. Fazia muito calor e eram comuns – como ainda o são – as tempestades de verão no fim dos dias. Eu estava na parte de trás do carro, por volta dos meus 6 anos, com os cotovelos apoiados no banco, olhando pelo vidro traseiro. Não conseguia desviar os olhos da cor do céu. Azul-espanto. Minha mãe sempre sentiu muito medo das trovoadas. Quando criança, um raio caiu próximo à varanda da casa onde vivia, arremessando-a para longe. Desde pequena, os estrondos celestes exigiam, pela voz da minha mãe, chinelos nos pés e chuveiro desligado. Não herdei esse medo. Ainda assim, pude ler, a partir daquela cor e, quem sabe, do nervosismo dela, que corria um pouco mais para logo chegar em casa, que a tempestade se anunciava. O céu parecia silencioso, sem raios ou trovões. Sem nuances. Inteiriço. Apenas a cor que nunca esqueci e agora ganha nome: azul-espanto.

Quando se joga uma palavra no mundo ela pode ser emprestada.

Não sei se a história aconteceu desse modo. Assim como os personagens do livro de Agualusa passam a desconhecer, no desenrolar da trama, a veracidade dos fatos. Dos fatos, do tempo, dos encontros e do espaço.

Já faz alguns meses que espio Agualusa de longe. Devo estar convocada pelo água no nome, pensei. Ou pelas lindas fotos da Ilha de Moçambique postadas no Instagram. Na sequência, pelo título do livro.

Sinto uma estranha familiaridade com pessoas que eu sequer conheço. Sinto que falam por mim. Pode ser maluquice mas eu prefiro apostar na transcendência. Vocês falam a mesma língua, diz o mesmo amigo pra quem contei minha lembrança de infância, um fascinado pelas tempestades. Deve ser isso, falamos a mesma língua, os três, ainda que possamos não falar o mesmo idioma.

A descrição do cenário de Agualusa me trouxe uma profunda curiosidade pela Ilha de Moçambique. O interesse pelas ilhas não é recente, tem um percurso: de um lugar tão presente na minha infância – a ilha de Porto Belo; de outro que eu já quis viver – a ilha de Florianópolis; e aquele que me atrai pela natureza bruta – a Islândia. A curiosidade despertada me impulsionou a procurar fotos do cenário descrito em “Os vivos e os mortos”. O olhar provocou vertigem, encantamento e angústia. Recuei.

Algumas palavras – sons – e frases – música – como as de Agualusa me servem como uma ponte, me transportam pro chão, alguma terra firme, me deslocando dessa condição flutuante e me fazendo esquecer, mesmo que por instantes, que estamos todos suspensos nessa bola que anda escurecendo enquanto vaga pela espaço.

Imagem: Alex Cerveny