Cartunista mais evidente de sua geração, autor completa 65 anos em 2021. Revista que o imortalizou faz 35. Ambos mantêm fôlego juvenil e imensa relevância
Em 1985, o mundo dançava com as paredes em clubes escuros das grandes cidades. Usava ombreiras e gel nos cabelos curtos, ao som de The Cure, Smiths e Echo & The Bunnymen. Vivia o novo hedonismo da austera era Reagan e Thatcher. No terceiro mundo, um país se reencontrava com a democracia e tentava superar sua síndrome de vira-latas, em meio a velhos problemas como desemprego, inflação e desigualdade social.
A luz de um novo tempo não fez o Brasil escapar da chatice que foram aqueles anos, já anunciados ao mundo desde a discoteque. Em contrapartida e na contramão, as ruas se encheram de punks, darks e metaleiros, no embalo de um festival internacional repleto de velharias, mas que fez ingressar em definitivo no mercado uma espécie de “novo rock” que já se anunciava desde o começo da década.
No ano anterior, o balde de água fria na derrota da emenda das Diretas Já levou à eleição indireta de Tancredo Neves, que sequer assumiu, morrendo antes da posse, deixando em seu lugar não-ocupado um dos líderes espertos da ditadura que findava. O remendo de escritor e coronel maranhense José Sarney tentava conduzir a crise econômica em planos mirabolantes. Malfadado em quase tudo, a bem da verdade conduziu um processo democrático que resultou em algo ao qual o povo não estava muito afeito havia duas décadas: liberdade de expressão.
Todo mundo que viveu aquele ano da graça de 1985 da era cristã tem um irmão mais velho, ou primo, ou tio, que um belo dia apareceu em casa com uma revista totalmente diferente, de nome Chiclete com Banana, e querendo saber que diabos era aquilo, abriu, folheou e leu. Foi um choque.
Em outubro, ao preço de 9 mil cruzeiros (ainda antes da nova moeda, o cruzado, que viria em um dos planos do citado presidente), trazia na capa a Rê Bordosa, personagem já conhecida dos leitores da Folha de São Paulo, nas tiras que vinham no caderno Ilustrada. A distinta moça estava em uma banheira com um cigarro e um copo de bebida apoiado nos seios, à mostra. O autor das tiras da Folha era Angeli.
Arnaldo Angeli Filho nasceu em 1956, na cidade de São Paulo. Roqueiro e periférico da classe média baixa como tantos de sua geração, largou os estudos na sexta série e aos 14 anos publicou seu primeiro desenho na extinta revista Senhor. Em 1973, foi convidado a desenhar para a Folha, no qual criou a tira diária Chiclete com Banana. Daí a referência.
Igualmente oriundos das tiras no jornal, outros personagens integravam o interior da revista: Bob Cuspe, Wood & Stock e os Skrotinhos, entre outros. Publicada pela Circo Editorial, recém-criada pelo poeta, editor e agitador cultural Toninho Mendes, Chiclete com Banana transformou-se no maior fenômeno dos quadrinhos de sua época, com tiragens de 120 mil exemplares.
O caso é que o humor da Chiclete era antes de tudo um espelho da sociedade da época, muito especialmente dos jovens. Se ícones como Bob Cuspe (um punk paulistano e suas idiossincrasias) e Rê Bordosa (uma junkie inspirada em tantas figuras encontradas pelas baladas da época), havia os neuróticos como Rampal o Paranormal, os escrotos iconoclastas como os Skrotinhos, os envelhecidos militantes de esquerda tal e qual Nanico e Meia-Oito e, é claro, hippies tão antiquados quanto os folclóricos Wood & Stock.
Com protagonismo escancarado de Angeli, a revista em princípio trazia também quadros com tiras e pequenas histórias de Laerte, Luiz Gê, Fernando Gonsales e Glauco, que depois ganhariam seus próprios títulos, como Piratas do Tietê, Geraldão e Níquel Náusea. Todos pela Circo.
O fenômeno durou até o início dos 1990’s, quando veio a falência provocada por mais uma crise econômica, de mais uma aventura ao liberalismo em que o país embarcou, com a eleição de Fernando Collor. A ruína foi geral e cada um seguiu seu próprio caminho. Mas Chiclete com Banana e seu humor influenciaram tudo que veio depois, respingando na música, no teatro, artes plásticas, cinema e televisão.
Angeli tomou a liberdade de “matar” Rê Bordosa, por não encontrar mais sentido nas loucuras da personagem, um tanto a sua feição, também de bom bebedor e dado aos excessos. Seguiu publicando na Folha até recentemente, quando abandonou as tiras na Ilustrada após 40 anos, dedicando-se apenas à charge política. Teve trabalhos publicados pelas revistas Linus, de Milão; El Vibora, de Barcelona; Humor, de Buenos Aires, e no jornal Diário de Notícias, de Lisboa. Idealizou o projeto Baiacu, fez exposição de quadros de seus personagens em galerias de arte, realizou trabalhos gráficos de respeito como a arte da capa da do segundo disco da banda Fábrica de Animais. Por 16 anos consecutivos (1997 a 2012), foi eleito o melhor chargista brasileiro no festival de quadrinhos na premiação HQ Mix.
Completou 65 anos no pandêmico ano de 2021. A Chiclete com Banana, por sua vez, completa em outubro agora 35 anos de sua primeira edição.
Ao contrário de alguns dos personagens retratados, ambos envelheceram muito bem. Icônicos de uma certa juventude. Aparentemente sem traumas.
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Leia. Ouça. Assista:
Angeli – site oficial
Chiclete com Banana – coleção
Angeli 24 horas – filme
Wood & Stock – Sexo, Orégano e Rock’n Roll – filme
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Imagens: reprodução