Adeus criatividade que já não habita mais em nós

Criatividade

Já são mais de 100 dias com tudo tão diferente. Para mim, entre idas e vindas, 110 dias.

Ainda antes de ir oficialmente com a mochilinha do escritório para o home office, percebi que as coisas estavam prestes a mudar. Para ser mais exata, no dia 12 de março, quando me peguei em plena Av. Paulista, em SP. E depois, na sexta-feira 13, quando no café da manhã do hotel vi na TV que os voos estavam sendo todos cancelados e, claro, eu tinha um a pegar.

As primeiras semanas foram de muita incerteza, depois veio a fase de adaptação, ajusta o escritório em casa, depois o conforto, digitaliza tudo, aí volta para o escritório, mas só por alguns dias, volta para o home office, triplica o volume de trabalho, não dorme o suficiente, não aguenta mais a casa e a paisagem, não quer sair, não vê a hora de sair… e cá estamos: dando adeus a toda aquela criatividade que um dia tivemos e que já não habita mais em nós.

Me sinto um pouco como o Hiro tentando ter uma ideia brilhante para a exposição dos estudantes, para impressionar o Callaghan e ser aceito no Centro Tecnológico de San Fransokyo. Não, não estou ficando maluca – ainda. Estou falando da animação da Disney, Operação Big Hero. O menino se prepara todo, a trilha sonora é Eyeofthe Tiger, do Rocky III (ou do Survivor), mas… nenhuma ideia vem. “Nada. Sem ideias. Cérebro vazio, inútil!”

Até que o irmão do Hiro olha ele nos olhos e diz “Ei, não vou desistir de você”, pega ele nos ombros e começa a chacoalhá-lo de ponta cabeça: “Use essa cabeça grande para encontrar algo. Olhe por outro ângulo”. Puffff… (imagine agora aquele emoji de explosão na cabeça). E Hiro encontra a resposta, encontra a solução. Reencontra a sua criatividade.

Voltando à pandemia e a nossa cruel realidade, eu também não vou desistir de nós, eu não vou desistir de você. E vou tentar te chacoalhar só um pouquinho por aqui para te ajudar a olhar por outro ângulo. Mas com você eu só posso ir até um certo ponto. O resto do caminho quem tem que trilhar é você mesmo, fica ao seu encargo, combinado?

Então vamos lá!

Chacoalhada nº 1: mude a sua mobília e/ou a decoração de lugar.

Não estou dizendo para você comprar nada novo, não. Apenas para mudar de lugar. Por experiência própria, de quem já morou em um quarto com 6m², numa casa de 176m² e em quase tudo que você possa imaginar entre esses dois extremos, acredite, sempre dá para mudar alguma coisa.

Troque o rack pelo balcão ou pela mesa ou pela escrivaninha. Mude o lado da cama. Inverta o lugar da sala de jantar e da sala de TV. Troque o lugar da geladeira ou do bebedouro. Se não conseguir ver espaço para mudar nada, troque os quadros ou a cor das paredes, mas troque. Só nesses 110 dias, meu escritório já teve 5 configurações diferentes. Além das mudanças nos móveis da sala, nos criados e gaveteiros… O próximo passo vai ser dar fim na porta da cozinha (juro).

Chacoalhada nº 2: leia uma revista que você jamais leria.

Sabe aquela coisa que “em condições normais de temperatura e pressão” você nunca faria? Então, não estamos “em condições normais” de nada. Vai lá, escolha uma revista que você nunca leria, que não te interessa mesmo. Vale revista de adolescentes, de pesca, de carros, de receitas, de história egípcia, de bordado, qualquer coisa! Reforço, você não precisa comprar nada. Dá para encontrar muita revista com acesso gratuito na internet. Pode ser antiga mesmo.

Encontrou um tema muito fora do seu universo? Ótimo! Agora tente ler o máximo da revista que puder ou aguentar – de preferência, ela todinha. Então, procure nos textos algo que você possa aplicar hoje em alguma área da sua vida. Procure soluções deste universo tão distinto que possam ser adaptadas de alguma forma ao seu universo.

Quem me ensinou esse exercício foi o Murilo Gun e eu repasso para todo mundo que eu conheço, sempre. O Murilo chama essa técnica de Olhar Criativo, ou Zoom Out. É olhar para uma solução bacana e pensar “boa sacada”, mas além disso, é identificar, entender e guardar para você o conceito genérico por trás dessa boa sacada, que pode ser aplicado em outros contextos.

Por exemplo, de um anúncio de agência de design especializada em pet shops de uma revista de cães e gatos, o Murilo tirou o input da importância dos nichos e da autoridade que se pode criar nesses casos. Eu, de uma revista de aviação com a apresentação de produtos como o Caviar iWatch (um relógio da Apple cravejado de diamantes negros carésimo), guardei a ideia da importância da combinação de coisas já existentes, mas sem uma relação direta (imagem do caviar, diamantes negros e relógio de luxo) em um produto novo, exclusivo, que agrega valor.

Chacoalhada nº 3: liste ao menos 30 coisas que você quer fazer quando a quarentena acabar.

Ah! Essa vai ser fácil, hein?! Vamos lá. Pegue uma folha em branco, um lápis e comece a listar. Não precisa pensar muito, não. Deixe o seu pensamento fluir sem nenhum filtro e vá colocando no papel cada ideia (verdadeira, plausível ou maluca) que aparecer na sua cabeça. “Andar no parque. Fazer churrasco com os amigos. Ir ao mercado sem máscara. Correr pelada na lua” – sem julgamentos aqui, eu falei.

Não pare antes de chegar na ideia nº 30, mas não se obrigue a parar quando chegar nela. Vá até onde tiver vontade. Essa é a etapa da divergência, na qual quantidade é muito mais importante que qualidade e onde queremos vencer a barreira da preguiça do nosso cérebro de ficar naquilo que já é conhecido, seguir os padrões, continuar na tão famosa zona de conforto.

Uau! Olha só quanta criatividade em uma única folha. E você achando que a sua criatividade tinha te abandonado, não é mesmo?

Filtre agora as oito coisas que você realmente quer muito (e poderá mesmo) fazer quando a quarentena acabar. Este é um exercício de convergência, no qual aprendemos a escolher dentre uma diversidade de opções, aquelas que realmente fazem sentido e devem ser levadas adiante. É a etapa de pé no chão, que funciona muito bem quando aplicada após aquela etapa de divergência, de viagem à lua.

Abre parênteses. Divergência e convergência são as bases da técnica de Brainstorming, termo cunhado pelo Alex Osborn no livro AppliedImagination: Principlesand Procedures of Creative Problem-Solving (Imaginação aplicada: princípios e procedimentos de solução de problemas criativas – tradução minha), de 1953. Outro dia falo mais sobre o tema. Fecha parênteses.

Agora vem a fase dois da chacoalhada 3. Repita o mesmo exercício, mas liste as 30+ coisas que você e as pessoas que moram com você fariam se tivessem decidido ficar em casa por livre e espontânea vontade. Tudo que seria uma delícia fazer. Tudo que vocês não viam a hora de fazer quando a rotina não permitia ficar assim, em casa. Agora selecione as 8 melhores. E coloque em prática. Hoje. Amanhã. Sempre que der na telha. E vá pensando em formas de realizar as 10 melhores ideias, as 20, todas elas.

“Use essa cabeça grande para encontrar algo. Olhe por outro ângulo”. Eu não vou desistir de você. E a sua criatividade também não.