“À Sombra dos Viadutos em Flor”. Um mergulho na alma do Fellini


Trajetória da banda que ajudou a revolucionar a música nacional é contada em livro por Cadão Volpato, vocalista e compositor do grupo

Sempre que ouço a palavra cultura

Saco meu talão de cheques…

(Fellini, O Adeus de Fellini, 1985)

A avenida Nove de Julho, que corta a região central de São Paulo, dando acesso à zona sudoeste da cidade, é cortada por uma série de viadutos, desde sua inauguração em 1941.

A história aqui passa pelo viaduto Major Quedinho, cujo trecho consiste de metade da rua de mesmo nome, a partir da famosa esquina onde funciona a lanchonete Estadão, em confluência com o viaduto Nove de Julho, que liga à praça da Bandeira, também sobre a larga avenida, de nome/data que homenageia a Revolução Constitucionalista de 1932.

A partir do Estadão, pela Major Quedinho acima, rumo ao Bixiga, pouco depois de um boteco no meio da quadra — o bar Mutamba — no balcão do qual Adoniran Barbosa compôs o samba Torresmo à Milanesa — “porque não existe”, diria Adoniran ao amigo Carlinhos Vergueiro, mudando o verso e o nome da canção que chamava-se primeiro Bife à Milanesa — e pouco antes de onde mais acima pela contígua rua Major Diogo fez-se o TBC, que revolucionou o teatro nacional, ao lado de onde hoje funciona o indefectível espaço Zebra.

O ano é 1983. Três rapazes ocupavam uma Kombi que fazia o trajeto pela Nove de Julho sob as portentosas e inúmeras pontes, carregada de mudança rumo ao prédio com o nome providencial de Edifício Viadutos, em pequena praça que surge dobrando pela rua Santo Antônio, pós esquina com a Quedinho, no qual os jovens iam morar, dividindo um apartamento. Os jovens: Alex, Minhoca e Cadão. Amigos da USP, onde faziam jornalismo na Escola de Comunicação e Artes.

O lugar chamado Bixiga também “não existe”. Trata-se de uma espécie de “lugar inventado” pelos descendentes de italianos da Bela Vista, nome oficial do bairro. O apartamento que os rapazes passaram a habitar, tivesse paredes que falassem, poderia hoje estar relatando algumas das mais interessantes e significativas passagens da história do rock brasileiro, que inadvertidamente começava a ser escrita naquele fim de semana, entre colchões, discos, livros e móveis desmontados que eram descarregados em seu interior.

No perímetro de poucas quadras era possível identificar também o porão onde aconteceu o “começo de tudo”. O cultuado clube Madame Satã, na Conselheiro Ramalho. Perto dali o “bar do árabe”, local em que os jovens tomavam seus aperitivos antes de embarcar na noite de música e atitude do lendário porão.

Cadão Volpato é jornalista, ilustrador e escritor. Ficou conhecido como vocalista e autor das letras da banda Fellini. Em seu livro À Sombra dos Viadutos em Flor (Sesi-SP, 2018) narra de maneira extremamente pessoal seu envolvimento com o rock dos anos 80, do qual foi expoente, e muito especialmente a trajetória da banda que formou com Thomas Pappon (baixo, depois guitarra), em 1984. O grupo teve ainda Jair Marcos na guitarra e Ricardo Salvagni na bateria.

A quem viveu o período, ou é fã, ou apenas interessado que seja, não há como não se envolver com a narrativa. O livro, feito o autor, é paulistano até a medula. Em recurso infalível de primeira pessoa, a memorabilia inicia na infância no bairro industrial do Ipiranga, onde nasceu e cresceu, em comovente descrição de suas primeiras impressões de mundo. Passa pela cena descrita anteriormente — da mudança na Kombi —, do primeiro emprego como revisor da revista Veja, a faculdade, o jornalismo, as festas, o romance com uma e depois outra garota — revelados sem pieguice ou piedade. Ainda e sempre, a conjuntura na qual o país se encontrava. E o rock. O punk. Os punks. E eles. Aqueles caras que já faziam “uma outra leitura”.

Principalmente: os caminhos que levaram à formação de algumas das mais importantes bandas que dariam rumos àquilo que veio a ser chamado de rock brasileiro. Seus parceiros de primeira morada que também realizaram seus rocks em bandas menos votadas, mas também muito significativas, como o Três Hombres de Minho K (o Minhoca). Os primórdios do eterno parceiro Thomas com seus Voluntários da Pátria e Smack, que contou com expoentes futuros do mainstream como Edgar Scandurra e Nasi. Ainda as Mercenárias. O Lira Paulistana. As passagens do Legião Urbana e a turma de Brasília pelo apartamento. Experiências com programações, sequencers e baterias eletrônicas que vieram facilitar o processo de produção como um todo, até os dias de hoje.

“Uma infância na ditadura, uma adolescência e uma universidade na ditadura. Em outubro de 1983, quando ela, a dita cuja, começava a agonizar, eu, o Alex e o Minhoca, a caminho do apartamento que iríamos ocupar na rua Major Quedinho. (…) Rapidamente descarregamos tudo. Eu já não tinha mais a cama de criança  que havia levado da casa de minha mãe para as outras repúblicas onde morei. Sobrara apenas o colchão. As roupas estavam numa trouxa. Não devia ter mais do que um par de lençóis, uma poltrona verde-água, comprada no Hospital do Câncer, uma máquina de escrever Olivetti lettera 22 cinza, nenhuma mesa”

(trecho de À Sombra dos Viadutos em Flor, por Cadão Volpato)

Pode-se interpretar o livro como uma “versão paulistana” da coisa toda. Apesar de sê-lo, vai muito além. Hoje todos sabem o quanto Fellini, com seu pós-punk de inspiração nos ingleses The Stranglers e João Gilberto inaugurou um novo modo de fazer rock, para lá do “faça você mesmo”. É possível dizer um “faça você mesmo: faça em casa”. Podemos sentir na leitura destes Viadutos de Volpato que o Fellini fez algo de fato que “não existia”. Quatro álbuns entre 1985 e 1989. Quatro clássicos. Há mais de 30 anos. Fellini, a banda, é assunto para outro dia. De tanto pano pra manga, Viadutos em Flor é um livro de guardar no coração.

A exemplo do que nos provia quando músico, Cadão Volpato entrega um produto com muita leveza e discrição. Não poderia ser diferente. Sempre à sombra daqueles encantadores viadutos. Diria Adoniran, justificando o torresmo à milanesa: “porque não existe”.

Imagens: reprodução / foto 1: Carlos Mancini;

Ouça. Leia. Assista:

O Adeus de Fellini (1985, full album)

Fellini só Vive 2 Vezes (1986, full album)

3 Lugares Diferentes (1987, full album)

Amor Louco (1989, full álbum)

O Dia do Adeus de Fellini (filme, 2019, dir. Zefel Coff)

À Sombra dos Viadutos em Flor, Cadão Volpato (Sesi-SP, 2018)