História do cinema russo se confunde com a do ocidente. A revolução foi estética, além de política
No começo do século 20, a Rússia, a exemplo de outros países da Europa Oriental, era dependente do ocidente para a aquisição de tecnologia cinematográfica (câmeras, projetores, películas, equipamentos em geral). Os filmes russos das duas primeiras décadas desde a invenção do cinema não eram tão tecnicamente ou esteticamente inovadores quanto os de seus equivalentes ocidentais. Os exibidores dependiam fortemente de importações de outros países. 90% dos filmes exibidos antes da Primeira Guerra Mundial eram importados. A primeira produtora nacional só foi fundada em 1907.
Mas, como ocorreu em todo mundo, mais ou menos pela época da Revolução Russa (1917) já havia uma próspera embora parca indústria cinematográfica nacional funcionando às margens do Volga. O estilo ainda era estrangeiro. Exemplo: o primeiro longa-metragem russo, Stenka Razin (1908), seguia claramente o estilo francês chamado film d’art.
Embora a indústria fosse pequena, ela conseguiu dar à luz algumas estrelas. Os atores Vladimir Maximov e Vera Kholodnaya apareciam nas revistas — que também surgiram na esteira da escala industrial. O diretor Yevgeny Bauer foi o grande realizador durante o período incipiente e início do soviético, pós-revolucionário.
Os filmes de propaganda feitos pelos bolcheviques em apoio à Revolução eram chamados “agitki”. Representam os primeiros passos organizados de utilização de filmes como um excelente dispositivo, voltado para as massas. A palavra agitki está relacionada com a expressão inglesa “agit-prop” (corruptelas de “agito” e “propaganda”, em tradução irresponsável, óbvia e livre).
Os bolcheviques traçam um plano objetivo de oito anos para o estabelecimento da “nova” indústria de cinema na novíssima nação. Embora o cinema soviético tenha nascido durante a Revolução, a forma que ele tomaria ainda não era muito evidente até a década de 1920. Como em toda revolução, tudo era ainda um esboço.
Faz sentido. O período que compreende a conclusão da primeira fase da nacionalização da indústria cinematográfica (1917-1922, mais ou menos) até a data de lançamento do Encouraçado Potemkin (Serguei Eisenstein, 1925) é considerado fundamental. E a conta fecha de fato em oito anos de 1917 a 25.
O cinema russo experimenta ali verdadeira e grande explosão em suas produções, agora soviéticas. Este rápido crescimento é ainda mais notável pela existência de uma forte oposição do Ocidente ao novo regime.
Como não podia ser diferente, é óbvio que a Revolução Russa não foi atraente para todos os talentos do cinema local, que bem ou mal já gozava de algum prestígio. Um verdadeiro êxodo de atores, diretores e técnicos esvaziou a recém-estabelecida União Soviética de algumas de suas melhores mentes. Dentre os atores que fugiram para a América estavam Maria Ouspenskaya (indicada ao Oscar, mais lembrada como a cigana em The Wolf Man em 1941), Ivan Mozukhin (o ator no filminho do Efeito Kuleshov), Mikhail Tchekhov (sobrinho de Anton), e Anna Sten (estrela de Nana, em 1934). A França e a Alemanha também foram refúgio cinematográfico para os exilados da Revolução.
Ainda por cima, países ocidentais impuseram um bloqueio à Rússia, de modo que poucos equipamentos novos poderiam entrar no país. Mas o cinema era uma política de estado acima de tudo para a União Soviética. E não foram poucas as realizações e avanços. Uma vez nacionalizada a indústria, os “agitki” foram produzidos durante e após a Revolução. Nadezhda Krupskaia (esposa de Lênin) ajudou a fundar o Comitê de Cinema.
O Comitê de Cinema fundou a famosa Escola de Cinema de Moscou. Lev Kuleshov fundou a Oficina Kuleshov e descobriu o “Efeito Kuleshov” (saiba o que é em link ao fim do texto). Dziga Vertov estabeleceu sua teoria “Kino-Eye”, misturando estética realista com propaganda e objetividade.
Antes do êxito de grandes diretores como Eisenstein e Pudovkin, os cineastas soviéticos e os burocratas da indústria tentaram de várias maneiras adaptar a ideologia marxista ao cinema. A verdade é que eram duas novas formas: um novo pensamento (aplicado) e uma novíssima forma de arte. E, de formas diferentes, ambos sofreram processos de negação no princípio.
Entre outros malabarismos, o mais clássico de todos, é claro: primeiro negaram que o cinema fosse uma forma de arte. As razões foram diferentes das expostas pela elite intelectual do ocidente, entretanto. Os soviéticos, “construtivistas” por vocação, digamos, não consideravam o cinema vulgar, como os ocidentais. É possível dizer que consideravam o cinema uma forma essencialmente nova de representar o mundo, sem todo o aparato burguês do palco “legítimo” do teatro (como fosse o teatro essencialmente burguês, enfim…). Ao contrário dos elitistas estéticos, eles apreciavam o fato de os filmes terem o potencial de atrair as massas.
O estabelecimento e absoluto sucesso da Escola de Cinema de Moscou (a primeira no mundo) foi um divisor de águas para a sétima arte. O período entre 1925 e 1930 viu mudanças radicais, mas desta vez na direção oposta: do experimentalismo ao totalitarismo. Estes são os anos altos da grande experiência do cinema formalista russo, os anos durante os quais os filmes mais famosos são produzidos: O Encouraçado Potemkin (1925), Strike (1925) e Outubro (1928, também conhecido como Dez Dias que Abalaram o Mundo); Pudovkin’s Mother (Mat, 1926), The End of St. Petersburg (1927) e Storm Over Asia (1928); Zvenigora de Alexander Dovzhenko (1928) e Arsenal (1929).
Antes de condenar completamente a uniformidade da produção cinematográfica soviética, é preciso ter em mente que o cinema norte-americano, por exemplo (sempre essa imbecil oposição EUA-URSS) foi concebido e cresceu mais ou menos na mesma época, e foi edificado sobre os mesmos moldes: o apelo das massas como padrão — embora ideologicamente de maneira oposta.
É possível retratar a década de 1930 como a “década da uniformidade”, ou da busca pela uniformidade. Uma uniformidade estética, mas também política. Se os movimentos fascistas eram uniformizados (estamos falando de fardamento mesmo), repletos de símbolos como o sigma e a suástica, os comunistas não o faziam diferente, eram fardados e bandeiras estampavam foice e martelo. Na estética cinematográfica, a uniformidade veio em filmes que “tratoravam” ideologia goela abaixo. De produções stalinistas “agitki” ao tributo de Leni Riefenstahl ao nazismo O Triunfo da Vontade (1934).
Em contrapartida ocidental, tanto em Hollywood como nos cabarés de Paris a uniformidade consistia de dançarinas de cancan e homens de smoking. Carmen Miranda já uniformizava a América Latina com suas bananas, afinal os EUA chegaram antes e pela porta da frente por aqui. Sempre o cinema moldando as mentes e estabelecendo mentalidades.
Outra coincidência com o Ocidente: os diretores formalistas enxergaram no advento do som um revés, uma vez que discutiam sobre as melhores formas visuais de transmitir significado. A seus olhos (haha!) diálogos e trilha sonora vieram a reduzir a necessidade de símbolos visuais mais sutis. Mas, assim como não havia como parar a Revolução, também não há como deter o progresso. A década de 1930 viu o aumento de projetores e frequência de filmes em todo território soviético.
A tendência continuou em direção ao que, lá por 1935, seria oficialmente chamado de “realismo socialista”. Filmes monótonos e extremamente caretas que versavam sobre a exploração do trabalhador virtuoso pela burguesia, e o triunfo final do proletariado. Tais filmes eram cada vez mais vigiados, com roteiros totalmente “sob controle”.
O realismo socialista incluía não apenas o cinema, mas todas as artes. Enciclopedicamente, é mais ou menos assim definido: “derivado da estética realista do romance do século 19, o realismo socialista era uma mistura de cenário realista, enredo e mensagem ideologicamente corretos, nos quais o herói proletário vence o inimigo do povo contra grandes obstáculos”.
A União Soviética finalmente se tornou tecnologicamente autossuficiente em cinema nos meados da década de 1940, em plena guerra. Era enfim uma nação capaz de produzir seus próprio filmes e equipamentos. Mas incrivelmente a produção reduziu. O número de filmes na década de 1930/40 foi aproximadamente um quarto do que havia sido no final da década de 1920.
A burocracia e censura da máquina do estado deu uma pequena relaxada após a morte de Stalin em 1953. Embora mais e melhores filmes fossem feitos, o cinema soviético nunca recuperou o lugar de destaque que tinha na década de 1920, quando nasceu e criou estética própria, influenciando o mundo todo.
O descongelamento no controle burocrático das artes na União Soviética resultou na “geração 1960”, que daria ao mundo verdadeiros gênios como Kira Muratova, Ellem Klimov, Andrei Tarkovski e Andrei Konchalovski. O experimentalismo formal voltou. Estava enfim completo o ciclo que iniciara com os ultrarromânticos revolucionários de 1920.
O cinema soviético se abriu ainda mais com o advento da Glasnost e da Perestroika durante os anos 1980, sob Gorbatchov. Mas nunca nada mais foi como antes. Na verdade, como o cinema do mundo todo.
Há muitos filmes soviéticos disponíveis. Tome uma vodca e vá em frente.
Saúde. Ou melhor, Za zdorov!
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Saiba o que é o Efeito Kuleshov. Entenda.
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Imagens: reprodução