A Partir de Hoje, Me Chame Pelo Meu Nome


Imagem Gerada Por IA - Daniele Biondo Crocetti
Imagem Gerada Por IA – Daniele Biondo Crocetti

Advogados são operadores do Direito, mas antes de qualquer coisa, advogados precisam ser bons contadores de histórias. A forma com que se conta uma história pode ser exatamente o que separa o reconhecimento ou não de um direito. No mundo jurídico, nada é absoluto e existem processos que a gente faz tudo o que precisa fazer, mas prefere não “ganhar”.

Algumas histórias a gente precisa saber contar, para que elas reverberem e produzam efeitos ex-tunc ou seja, valendo também para o passado.  Ouvir atentamente a dor de alguém e transformá-la numa narrativa capaz de tocar a humanidade do outro é algo essencial na advocacia, pelo menos para a modalidade de advocacia que eu convencionei chamar de advocacia humanizada.  E antes que alguém pense o contrário, sim, magistrados e magistradas são seres humanos como nós, com corações repletos de emoções.

Um dia recebi uma pessoa no meu escritório para uma consulta. Era uma questão patrimonial. Nossa conversa evoluiu e essa pessoa me contou vários episódios de sua vida e muito rapidamente nasceu ali uma simpatia mútua, uma empatia mágica. Um básico do ser humano não era natural para ela: seu nome. O nome despertava a lembrança de uma infância de clandestinidade e profundo abandono.

A pessoa era filha de mãe viúva. Essa viúva, adotou o nome do marido quando se casou. Tendo enviuvado, manteve o nome de família do falecido. Essa criança nasceu anos depois da morte do marido da mãe. A mãe da criança, manteve um longo relacionamento abusivo com um homem casado, rico e empregador dela.

Ela engravidou dessa pessoa, agora, minha cliente. A criança nasceu e obviamente foi registrada sem nome de pai. Como a mãe adotou o sobrenome do marido falecido, a criança recebeu no seu registro, não o nome de família da mãe, nem o nome de família do pai biológico, que não a reconheceu, ela recebeu o nome de família do falecido marido da mãe, que ela sequer veio a conhecer.

Mas o fato é, que essa criança cresceu próxima ao pai biológico, patrão da mãe, próxima dos irmãos paternos, sem poder dizer que era parte daquela formação familiar. Ela via o pai com seus meios-irmãos, filhos do casamento, fazendo refeições com a família “legítima” aos domingos. Até certo ponto, convivia com eles. No fundo, e esse é um pensamento meu, todo mundo ali sabia da existência e da ascendência daquela criança.

Para que não tentasse falar com o pai na presença da esposa e dos filhos do casamento, sua mãe, vivendo uma situação de violência, dependência emocional e de abuso afetivo e financeiro, lhe dava latas de doce para que ela ficasse num canto, comendo aquilo vorazmente, e não “importunasse” o homem, como se sua necessidade de afeto fosse suprida pelo açúcar e que esse açúcar, disfarçasse a amargura daquela vida de isolamento, silenciamento e dor.

Cresceu sabendo que aquele era seu pai, sem poder falar sobre isso. Sem poder se expressar em público, sem poder mostrar que fazia parte da vida daquele homem tanto quanto os demais filhos. Sem Natal, sem Dia dos Pais, sem mostrar um boletim da escola, sem um olhar afetuoso. Viveu intensamente a solidão dos filhos chamados ilegítimos num passado que queremos esquecer, em que os filhos fora do casamento eram chamados bastardos. É certo que ninguém mais é chamado de bastardo, mas e o tratamento? E o sentimento?

É preciso refletir que nesse momento existem milhares de crianças brasileiras vivendo exatamente dessa forma. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, existem mais de 5 milhões de pessoas sem nome de pai na certidão de nascimento, portanto, essa pessoa é apenas o abandono com um rosto, uma voz. E logo, logo, um processo.

Enquanto conversávamos, eu pensava em quanta dor aquela pessoa sentiu enquanto crescia. Um sofrimento que não pode ser superado. Concordo com Martha Medeiros quando ela diz que o tempo não cura tudo, ele apenas tira o incurável do centro das atenções. Entretanto, nesse caso, o incurável estava no centro das atenções, todos os dias, quando essa pessoa precisava falar, escrever ou revelar seu nome completo. Um documento com o nome de família de um homem morto que ela desconhecia e um vazio na qualificação do pai e dos avós paternos.

Ele nunca tinha dado nada a ela, nem mesmo reconhecimento afetivo ou apoio financeiro enquanto crescia. Os irmãos, todos formados com belas carreiras. Isso, essa pessoa não teve. Teve que se virar sozinha. Não vivia mal, mas poderia ter sido. Nada disso poderia ser recuperado, mas uma coisa era possível: o reconhecimento de que é sua filha e o nome que é seu direito.

Depois da maioridade, decidiu entrar com uma ação de investigação de paternidade. Enfrentou a ira dos demais herdeiros, mas conseguiu legitimar sua filiação biológica e pôde ter incluso em seu nome, o nome de família do pai. Mas isso era realmente insuficiente.

Muito eficaz, mas insuficiente. Não era essa a sua identidade como ser social. Imagine, conviver com um nome que não te representa? Para sua descendência, nada serviria. O que ela tinha era o nome falecido do marido da mãe. Não tinha sequer o sobrenome materno. No seu caso, no reconhecimento de paternidade, o nome do pai biológico foi acrescentado depois do nome do marido falecido da mãe, portanto, o que ela tinha era a história da mãe com esses homens. Nada que fosse dela.

O que ela precisava e desejava era relativamente simples: remover o nome de família do falecido, adotado pela sua mãe, incluir os nomes de família dos pais biológicos e estender isso aos seus filhos, fazendo constar os nomes de seus pais como avós e finalmente, ter seu nome exatamente do jeito que deveria ser: Seu nome, sobrenome da mãe, sobrenome do pai. Simples assim.

No entanto, se existe uma coisa complicada de se fazer é conseguir mudar o nome em qualquer tempo da vida num caso desses. Me relatou que durante anos procurou profissionais de direito e a resposta sempre foi de que isso não seria possível e que teria que se conformar em viver assim, com aquele nome familiar que não era de sua família. A sensação de não pertencimento e o pesar pela injustiça de não poder ser quem é eram uma constante em sua vida.

Ouvi atentamente tudo aquilo e confesso que eu também achava que não teria solução. Num segundo encontro, a pessoa voltou no assunto. Gosto de chamar minha advocacia de advocacia humanizada, cujo propósito é entregar à pessoa aquilo que faça com que ela se sinta melhor de alguma forma. Que entregue a ela, alguma sensação de justiça.

Naquele momento eu decidi lutar por isso. Afirmei que o não nós já tínhamos, o máximo que poderia acontecer seria ficar como estava, mas não sem que tentássemos. Não foram poucas as tentativas. Duas vezes a justiça rejeitou o pedido por entender que não havia previsão legal para as mudanças que propusemos. O máximo era o que o reconhecimento de paternidade já tinha entregado: a inclusão do nome familiar do pai.

Aí eu entendi que o problema não estava no direito, estava na narrativa. Ela precisava expressar o poder dessa história e na destruição diária que esse nome promovia nas emoções dessa pessoa. Ela precisava encontrar sua identificação. Mais do que um DNA, ela precisava ver em seus documentos, contratos, crachás, a sua persona.

Sentei-me de madrugada, respirei e contei essa história com um afeto enorme. Sem ser apelativa, eu juro, mas enquanto narrava, procurava me colocar em cada momento de impotência, de dor, de abandono, de sentimento de inferioridade. Naquele momento, eu encontrei a varinha para tocar o coração humano por debaixo da toga.

Nasceu uma narrativa que possibilitou entregar exatamente aquilo que aquela pessoa sonhou por toda uma vida, nos últimos quarenta e poucos anos. Como ela me disse, deixou de ter um nome “emprestado” para ter o nome de papel passado, para ela e para seus filhos, já adultos, que compartilharam até hoje, esse trauma. Evidente que ninguém pode alcançar o que essa pessoa sentiu a vida toda. Mas eu posso dizer como me senti, quando isso, de alguma forma, se resolveu para que ela siga em frente.

Muitas vezes nos falta a noção dos nossos privilégios. No último dia 12 de outubro, eu fui fazer uma homenagem a pessoas de um grupo do qual faço parte e digo que, se você tem uma única foto de infância que seja, você é já é uma pessoa privilegiada. Um nome que conte por completo a nossa origem, é um privilégio, pode acreditar. Eu acreditei que valia lutar por ele, no instante em que eu ouvi aquele relato.

No dia em que eu noticiei a sentença, perguntei à pessoa: como você se chama? Ela me respondeu: já podem me chamar pelo meu nome?  Eu disse que sim e que seus filhos também poderiam ser chamados pelo nome que lhes pertencia. Vivi um momento de emoção, felicidade e alívio.  Contar uma história do jeito que ela precisa ser contada, envolve humanidade ao ouvir também. Talvez em nenhuma das outras vezes em que ela contou como foi sua vida, foi devidamente escutada. Todas as vezes que minha profissão me entristece, eu lembro desse tipo de momento e me reconecto com o motivo de escolher fazer o que faço.