A Melancolia Neoliberal: O trabalho em suas (des)medidas


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Falar de trabalho é, inevitavelmente, falar de uma ficção necessária — aquela que nos enobrece, que nos inscreve no mundo como sujeitos de uma narrativa produtiva. Mas o trabalho, é como o sentido do real lacaniano, é aquilo que escapa, que não se deixa domesticar: por trás do véu do esforço dignificante, há a exploração, a submissão a um sistema que transforma vidas em combustível para o lucro canibal.

O trabalho, em sua dimensão simbólica, é o que nos permite materializar no mundo não apenas objetos, mas desejos. Uma obra de arte, por exemplo, é o resultado de uma convergência de esforços que vão muito além da inspiração: há o suor, a repetição, a burocracia, o cansaço. O artista não lida apenas com a poesia, mas com a conta de luz, com a montagem do cenário, com a angústia da divulgação. O mesmo vale para o músico que sustenta uma orquestra, para o curador que mantém um museu aberto, para o ator que, depois do ensaio, ainda varre o palco.

Mas eis a ironia: justamente aquilo que gera riqueza, emprego e sentido — a arte, a cultura — é sistematicamente taxado de supérfluo pelos arautos do neoliberalismo e da extrema-direita. Por quê? Talvez porque, em sua lógica perversa, o trabalho só seja digno se for penoso, se doer, se esvaziar o sujeito de qualquer gozo possível.

O neoliberalismo não se contenta em explorar corpos; precisa também controlar a libido do trabalhador. Não basta que o salário seja miserável — é preciso que o próprio ato de trabalhar seja desprovido de prazer. O que assusta esses ideólogos não é a ociosidade, mas a possibilidade de que alguém possa encontrar satisfação em algo que não seja o sofrimento rotinizado.

O capitalismo, em sua versão mais selvagem, já não é apenas de um sistema de trocas materiais, mas uma máquina simbólica que redefine o que é permitido existir. A vida, nessa equação, vale apenas na medida em que se converte em valor monetário. O que não é rentável, o que não serve ao mercado, é descartado como inútil — inclusive a arte, a poesia e o cuidado.

A arte, no entanto, resiste. Ela não luta apenas por seus próprios trabalhadores, mas por uma ideia mais ampla de trabalho: um que não seja melancólico, que não precise se justificar o tempo todo, que possa florescer para além das grades do utilitarismo. Um trabalho que, quem sabe, um dia, não precise mais ser chamado de trabalho — mas simplesmente de vida.

(Texto dedicado aos trabalhadores da arte no Brasil, que insistem em criar, apesar de tudo.)