Filme promocional feito por encomenda para alavancar disco dos Beatles acabou se tornando um ícone da cinematografia
Quando estreou em setembro de 1964, Os Reis do Iê Iê Iê (A Hard Day’s Night, Richard Lester) era apenas um musical rock’n roll. Os Beatles já eram um fenômeno publicitário que arrebatara 70 milhões de telespectadores no programa de tevê The Ed Sullivan Show, em um ingresso avassalador até então jamais ocorrido nos Estados Unidos.
De toda forma, o quarteto de Liverpool ainda não era algo que podia ser considerado como um ícone cultural. A crítica postou-se nas salas de cinema para assistir ao filme preparada para uma peça absolutamente comercial. Mas o que assistiram era tão pouco convencional, tão bem fotografado, e tão original que o que houve foi surpresa, até mesmo dos mais temidos críticos do fenômeno, ainda em fase de assimilação.
Prestes a completar 60 anos, o filme não envelheceu e tampouco soa datado. Está de fato fora de seu tempo, de seu gênero. Está inclusive fora do rock. É um dos grandes marcos estéticos da cinematografia como um todo.
Em 1964, o que chamamos de “contracultura” ainda não havia saído do forno beatnik, apesar de já dar pistas em evidências como os festivais folk universitários pela América e caras como Bob Dylan e Joan Baez já estarem fazendo algum ruído, bem como Allen Ginsberg e “aquele bando de malucos” que andava com ele. Se já estava gestado, o fenômeno hippie era algo ainda em formação. E o rock arrefecera desde que Elvis fora servir ao exército na Alemanha Ocidental em 1961.
Talvez este tenha sido o filme que fez soar o primeiro acorde da nova década, através do novíssimo violão de doze cordas que George Harrison estreava. A coisa foi tão influente em suas imagens, que centenas de milhares de jovens entraram no cinema com cortes curtos, e de alguma forma mágica seus cabelos começaram a crescer durante o filme e não foram aparados novamente até a próxima década.
Quem estava lá diz que era possível notar desde o início que A Hard Day’s Night estava numa categoria diferente dos musicais de rock estrelados por Elvis. Era inteligente, irreverente, e principalmente “não se levava a sério”.
Pra começo de conversa, foi filmado e editado por Richard Lester em um eletrizante estilo semidocumentário, em preto e branco. Parece pouco, mas tente imaginar. Ninguém pensava em vender absolutamente nada em p&b para adolescentes, principalmente naquele momento.
O roteiro foi escrito pelo dramaturgo Alun Owen, que pertencera a uma geração de comediantes britânicos do qual os Beatles eram fãs. Owen acompanhou a rotina da banda por um período. E não pestanejou em reproduzir uma trama documental que parecia acompanhar os meninos durante um dia de suas vidas.
Frases de efeito e gracinhas que os quatro costumavam responder em salas de imprensa infestam os “diálogos”. Algo como “você é um mod ou um rocker?” — Ringo é questionado em uma entrevista coletiva —; “sou um tirador de sarro”, responde o baterista.
O filme é repleto de ótimas músicas, incluindo I Should Have Known Better, Can’t Buy Me Love, I Wanna Be Your Man e outras, incluindo a música-título, inspirada em um comentário feito por Ringo e escrita durante uma noite no hotel por John Lennon e Paul McCartney.
Se não eram exatamente uns selvagens, os Beatles tampouco eram domesticados. Nunca foram completamente entregues ao sistema. O escritor e crítico de cinema Roger Ebert escreveu em 1996: “os astros do rock norte-americanos que os precederam foram treinados por seus empresários; Presley respondia obedientemente às perguntas das entrevistas como um bom menino. Os Beatles tinham uma aparência de clone — cabelos e roupas combinando — mas eles desmentiam isso com a individualidade de seus diálogos, e não havia dúvida de qual deles era John, Paul, George ou Ringo. A versão original do roteiro indicado ao Oscar de Alun Owen forneceu-lhes frases curtas (caso não pudessem atuar), mas eram naturais, e novo material foi escrito para explorar isso. Eles eram reais”.
A Hard Day’s Night é um dos melhores filmes sobre absolutamente nada já realizados. De orçamento escasso (algo como 180 mil libras, incluindo o promocional) e um tempo de filmagem limitado, o filme era visto pela United Artists como mais um longa-metragem comercial, com objetivo de alavancar o próximo disco dos Beatles. E só.
Mas a beatlemania estava em curso, no auge. A companhia poderia ter obtido lucro se lançasse um longa-metragem dos Fab Four fazendo qualquer coisa. Lester e Owen deram outra “mão” ao processo. Por exemplo: a palavra “Beatles” nunca é falada no filme. Eis.
A United Artists, que também era o braço fonográfico do negócio — ao menos nos EUA — presumiu corretamente que a beatlemania não duraria para sempre, e este foi o primeiro de três longas-metragens encomendados para lucrar com o fenômeno enquanto ele estava no topo.
A Birth Movies Death descreveu: “não há muita história em A Hard Day’s Night — a banda viaja para Londres para um show na tevê e o irascível avô de Paul os coloca em alguns pequenos problemas ao longo do caminho — mas a frouxidão da estrutura é a chave para a imensa alegria do filme. O Fab Four corre, pula e abre caminho por cenários pouco conectados, sempre visando a diversão ideal. Há uma energia constante de desenho animado que leva o filme de cena em cena, fazendo pausas ocasionais para os Beatles tocarem uma música”.
Embora essa descrição pareça superficial, A Hard Day’s Night se torna algo mais profundo. À medida que os meninos interpretam versões ficcionais de seus personagens agora lendários, dá pra enxergar os estágios iniciais dos traços de personalidade que mais tarde viriam a definir cada um dos quatro.
Consequentemente, aquele fervor cultural ainda em formação acabou se tornando o foco central do filme: quatro ingleses estranhos (pleonasmo, perdão) e muito pouco ortodoxos, correndo e tentando se livrar momentaneamente, de alguma forma, do resultado de sua empreitada, de sua fama.
Eles estavam, por assim dizer, em busca de que chegasse logo, enfim, a “noite de um dia duro”, de muito trabalho.
Há uma versão restaurada em sépia por aí. Uma lindeza de se ver, especialmente em salas de cinema, com bom equipamento de som.
O filme é genial. E o disco também.
Eram os Beatles, porra.
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Ouça. Leia. Assista:
A Hard Day’s Night – 1964 – trailer
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Imagens: reprodução