Em Paris é uma Festa, Hemingway expõe pessoas, lugares e pontos de vista. Obra é um apanhado de textos, mas tem concisão de um romance
Ernest Hemingway costumava filar algumas refeições nas muitas tardes de pobreza e vazio que passou na França, na casa da amiga e incentivadora Gertrude Stein. Em uma passagem de Paris é uma Festa (A Moveable Feast, 1964) — reunião de 20 crônicas publicada post mortem a partir de manuscritos deixados pelo autor — entre um croissant e goles de café ele observa as paredes da sala de Stein, cobertas de quadros de artistas já bastante consagrados, como Picasso, Dali, Matisse e Magrite. Ele pergunta a ela como (apesar de rica) conseguira dinheiro para ostentar aquela pequena fortuna em arte. Ela reponde que não gastou quase nada, apenas porque os artistas à época que ela os adquiriu, não eram nada, ainda. Ela acreditou nos seus trabalhos e pagou algo como 20 dólares por um quadro que hoje vale milhões.
No tempo em que Ernest e a esposa Hadley chegaram a Paris nos últimos dias de 1921, os escombros (físicos e mentais) da Primeira Guerra Mundial estavam começando a deixar de assombrar a França. A vida na margem esquerda do Sena começava a florescer novamente. E já havia algum tempo que jovens novos autores americanos começavam a dar os primeiros toques de como aquela marcha tocaria por todo o século 20.
A boemia tinha traçado bastante evidente do Boulevard Montparnasse, a partir da Closerie des Lilas no Observatoire até o Restaurant du Petit Trianon, perto da estação de trem, e tinha um pico ou outro perfazendo uma rota acidental até St.-Germaindes-Prés ao longo do rio. Pintores davam com a cara em estúdios e salas para escritores quando rumavam na direção do Cemitério de Montparnasse, para alugar em preço razoável, e já bastante ocupados. Boêmios secundaristas e universitários enchiam a cara noites adentro no Baizar’s, apropriadamente na Rue des Ecoles. Os mais abonados almoçavam e jantavam de frente para os Jardins de Luxemburgo, no legendário Café de Médicis. O vinho de 1915 do Hospice de Beaune e o Marc de Bourgogne foram provavelmente a safra que cunhou a expressão vintage (a idade do vinho) como tradução de algo que marcou época, desde então. E que embalou aquela que ficou conhecida como a “Geração Vazia”.
Hemingway vinha recomendado através de cartas — que portava no bolso do puído paletó — pelo romancista Sherwood Anderson, que o credenciou a Gertrude. Mas a verdade é que naquele pequeno mundo de sonho e renascimento pós-guerra já não era de grande valia ou necessidade aquelas tradicionais apresentações formais. Dá pra dizer que todo mundo estava naquela mesma meia dúzia de biroscas, estúdios, cafés e livrarias. Do café da manhã ao jantar, era impossível não se deparar com um e outro.
Paris foi a capital do mundo entre 1890 e aquela década que se iniciava. No período, viu malucos como Santos Dumont passarem voando em um dirigível como se nada estivesse acontecendo, viu o comportamento sexual da classe média e alta mudar radicalmente, com aceitação de homossexuais e artistas como parte integrante da sociedade. Viu o caso Dreyfuss, os automóveis e o avião, ainda o cinema, e foi epicentro de uma guerra mundial. 1920’s só podia ser sentida (e vivida) como uma década de sonho. E os americanos — Hemingway incluso — estavam lá, via bolsas do Guggenheim ou apenas gastando seus valiosos dólares de uma economia falida pela guerra.
Era uma geração da “arte pela arte”, na qual paixões ideológicas ainda eram desconhecidas. Artistas e escritores faziam parte de uma espécie de família unida e nutriam em comum o desprezo pela burguesia, resquício de uma atitude ultrarromântica do século 19.
No bairro de St.-Germain havia dois pontos de encontro fundamentais, na Rue de l’Odéon. A Maison des Amie des Livres (uma biblioteca de empréstimos!), da livreira francesa Adrienne Monnier, onde Valery Larbaud leu sua famosa conferência, a título de uma avaliação de Ulisses, de James Joyce. E a Shakespeare and Company, da americana Sylvia Beach, até hoje uma “praia” de amantes da literatura. Era por ali que rolavam os encontros e os bate-papos com todos os autores britânicos e americanos que apareciam em Paris.
Até então, havia relativamente poucos americanos por perto. Ezra Pound havia se estabelecido; Gertrude Stein e Man Ray estavam lá; Will Bradley estava estabelecendo uma agência literária; Edna Millay, expoente do mundo gay; Janet Flanner e Virgil Thomson; Hart Crane de passagem; Harold Stearnse e sua paixão por Montmartre; George Santayana que começou a escrever uma coluna sobre corridas de carros para o The Paris Herald, assinando como Peter Pickem. Resultado: em 1923, Paris estava repleta de norte-americanos.
Paris é uma Festa é composto por 20 textos reescritos a partir dos cadernos de Hemingway, anotados entre 1921 e 1926. Apesar de ser obviamente uma “coletânea”, de crônicas reunidas, a obra ganha tom de romance. Muito provavelmente devido à famosa concisão narrativa do escritor, e obviamente à cronologia dos escritos. Em suas páginas estão mensagens que se destinam a pessoas que só os mais atentos leitores vão capturar. E, claro, porque o velho Hemingway (mesmo ali jovem), nunca deu ponto sem nó.
“As emoções são os únicos fatos”, escreveu certa vez Havelock Ellis. “Este é um livro de amor, ódio e amargura”, relata, sobre o lirismo controlado de que Hemingway era mestre, “estas páginas são maravilhosamente evocativas”.
Não passa batido o amor por Hadley. O autor revela o alcance de uma extraordinária felicidade e ternura. Também fica evidente sua admiração por Ezra Pound, que bem ou mal era uma espécie de bússola para o próprio caminho que seria percorrido por Hemingway. Amor também declarado por Sylvia Beach, a livreira, sobre quem narra um tanto mais, e foi a pessoa que apoiou sobremaneira a edição de seu primeiro livro Three Stories and Ten Poems (1923), comercializado em primeira mão na Shakespeare and Company.
É especialmente um livro sobre pessoas, e a escolha desconcertante pelos personagens é marca registrada do autor. A nota introdutória diz que foi feita “por razões suficientes para o escritor”. O pintor Pascin, que pouco dizia; o homossexual anônimo, o bondoso e velho Ford Madox Ford, ente outros.
Os retratos, bons relatos, verdadeiros retratos mais detalhados, são acerca de Gertrude Stein e Scott Fitzgerald. Stein foi sua primeira amiga íntima em Paris. Em uma de suas conversas, ele teve a impressão de que ela estava tentando convencê-lo de algo mais do que a simples tolerância à homossexualidade. Hemingway, que era naturalmente um americano bronco e preconceituoso, escreve com o distanciamento apropriado para a ocasião: “a senhorita Stein achava que eu era muito ignorante sobre sexo e devo admitir que tive preconceitos contra a homossexualidade desde que a conheci em seus aspectos mais primitivos. Eu sabia que era por isso que você carregava uma faca”.
Um quarto do livro é dedicado à relação com Scott Fitzgerald, da qual Zelda Fitzgerald (Zelda Scott) obviamente não passa desapercebida. Em três textos (um longo e dois mais curtos), Scott é tratado cinicamente, com ironia, e também com certa afeição. Zelda é alvo de ódio por Hemingway, que nunca foi com a cara dela.
Em Nunca há fim para Paris, o significado do livro é enfim revelado. O artista que há em Hemingway é magistral e consegue (sem tê-lo feito em vida) dar unidade ao seu livro. “Aqueles que atraem as pessoas por sua felicidade e desempenho geralmente são inexperientes”, escreve ele sobre si mesmo. “Eles nem sempre aprendem sobre os bons, os atraentes, os charmosos, os prontamente amados, os generosos, os ricos compreensivos que não têm más qualidades e que dão a cada dia a qualidade de uma grande festa”.
Ernest Hemingway ficou com Hadley até 1926. Em 1927 casou-se com Pauline Pfeiffer, jornalista com quem viria a ter dois filhos. Voltou para a América, estabeleceu-se em Key West, na Flórida. Acompanhou a Revolução Espanhola, foi viver em Cuba onde é até hoje lembrado. Voltou para Key West, onde tirou sua própria vida, com um rifle, em 1963.
Naquela tarde em 1922, com o bucho cheio de croissants, quando saiu do apartamento de Gertrude Stein impressionado com os quadros nas paredes, pronto para encarar sua pobreza e a dura vida de escritor, decerto ainda não imaginava que seria o maior de sua geração, e do século 20. Era preciso pensar na janta.
Afinal, Paris era uma festa ambulante no lado esquerdo do Sena.
…
Ouça. Leia. Assista:
Paris é uma Festa, Ernest Hemingway
Dos Rios para o Mar, documentário
…
Imagens: reprodução