A carne negra do planeta fome


Elza Soares é dona da voz do século e de uma trajetória heroica, símbolo de luta e inspiração às novas gerações

Ary Barroso era dado a gracinhas de toda sorte com todos os calouros que se apresentavam em seu programa Calouros em Desfile, na Rádio Tupi. Em 1953, uma garota mirrada e com trajes puídos costurados com alfinetes se lhe apresenta para cantar. O maestro arrogante pergunta “de que planeta você veio, minha filha?”. A garota detona: “do mesmo planeta que o senhor, maestro, o planeta Fome”.

A pequena nascera na favela de Moça Bonita, na zona oeste do Rio de Janeiro. Tinha 23 anos. Morava na Água Santa, zona norte, à época. Era viúva e mãe de quatro crianças, tendo perdido antes dois rebentos mortos de desnutrição e trabalhava como faxineira.

A moça cantou o samba-canção Lama, de Paulo Marques e Ailce Chaves — dos versos “se eu quiser beber eu bebo / se eu quiser fumar eu fumo…”. A voz rouca pendendo ao jazz chamou a atenção. Ganhou a nota máxima.

Ela se chamava Elza Gomes da Conceição. Adotou o nome Elza Soares, e deitou a gravar compactos e cantar ao vivo pelos bailes da vida. Só obteve algum sucesso em 1959, com Se Acaso Você Chegasse, de Lupicínio Rodrigues.

Elza não parou mais. Com este primeiro LP excursionou à Argentina, foi comparada a Louis Armstrong devido ao vibrato de sua voz, e acabou por conhecê-lo pessoalmente quando foi ao Chile representando a cultura brasileira na Copa do Mundo daquele ano, 1962, no qual o Brasil levantaria a taça pela segunda vez consecutiva. E um certo ponta direita foi o grande destaque da Canarinho, considerado o melhor jogador do torneio.

O segundo disco de Elza Soares chamou-se A Bossa Negra. Um contraponto nada sereno à indústria que tantas vezes lhe renegara um contrato quando descobriam a cor de sua pele, mesmo tendo se impressionado com sua voz anteriormente. Mas acontece que ela arrasava. Tinha “pegada” internacional, jazzística, bluesy. Era a bossa nova do morro, de fato. Quando caía no asfalto da zona sul, deitava. Era fácil.

Em Viña del Mar, Pelé se machucou no segundo jogo da Seleção na copa, um 0x0 contra a Tchecoslováquia. O ponta direita Manoel dos Santos, conhecido por Garrincha, chamou para si a reponsabilidade de conduzir o Brasil ao bicampeonato. E fez por onde. Quatro vitórias seguiram, e o título no dia 17 de julho em Santiago.

Há todo um folclore acerca da ingenuidade exacerbada de Garrincha, que acaba por tirá-lo para um tolo ignorante. Burro mesmo. Uma grande mentira. Garrincha era um homem extremamente humilde, de hábitos simples, mas muito cortês e educado, e acima de tudo tinha um gosto musical sofisticado acima da média, sendo orgulhoso proprietário à época de uma vasta coleção de discos de jazz. Daí para ser atraído pelo vibrato blues e bater o olho na beleza de Elza Soares foi um pulo.

Melhor: um drible. Garrincha era casado. Desembarca no Rio de Janeiro com a taça e a morena. Um tórrido romance se seguiu. E muitos problemas. A sociedade pode aceitar um “caso”, uma “pulada de cerca” do maior ponta direita do mundo, bicampeão mundial. Afinal ele era a “alegria do povo”. Mas nunca perdoaria uma mulher, negra, amante.

Durante anos a “culpa” pelas mazelas de Garrincha foi creditada a Elza. Alcoólatra notório, treinava mal e jogava lento: culpa de Elza. Machucava-se com facilidade: era por causa das noitadas com a cantora. Durante todo restante da década de 1960 Elza foi acusada de ser a “amásia” que arruinou a vida do craque mais querido do Brasil.

Ao que interessa. A sociedade branca podia desprezá-la, mas quem apreciava música não a ignorava. Elza foi gravando um disco atrás de outro, levando seu raro suingue e elevando seu prestígio cada vez maior no exterior. Enquanto a estrela solitária de Garrincha era cadente, a de Elza brilhava altiva.

Mas a sociedade não dava trégua. Elza e Garrincha assumiram o relacionamento e foram viver juntos. Em 1970, a casa de ambos foi metralhada. Um caso até hoje sem solução. Muitos creditam o fato à ligação anterior de Elza com a campanha (ela cantou um jingle) do ex-presidente João Goulart, deposto pelo golpe de 1964. Elza e Garrincha exilam-se na Itália.

O alcoolismo em Garrincha tornou-se grave, e as agressões tornaram-se frequentes. Elza resolve se separar. E mais uma vez a sociedade caiu em cima de sua pele escura. Foi acusada de ter abandonado o craque no momento em que ele mais necessitava.

Garrincha morre em 1983, no dia 20 de janeiro. O filho de ambos, “Garrinchinha”, morre três anos depois em um gravíssimo acidente de carro, em 1986. Elza entra em período de obscuridade que duraria perto de uma década. Mas nunca deixou de gravar e se apresentar.

Nos anos 1990, com o velho prestígio readquirido, uma sociedade redemocratizada de fato, e com as questões da mulher e do negro enfim colocadas na mesa de forma franca, Elza era livre para empreender, e a nova geração não lhe virou as costas. Consagra-se definitivamente.

Foi eleita “Melhor Cantora do Milênio” em 2000, pela BBC de Londres. Foi indicada ao Grammy com o álbum Do Cóccix até o Pescoço (2002), considerado o melhor de sua carreira. É deste disco a canção A Carne (“a carne mais barata do mercado é a carne negra..”). Elza atira-se de vez na militância contra o racismo e torna-se um símbolo definitivo da luta do povo negro e das mulheres.

Devido a uma queda no palco que sofrera em 1999, Elza apresentava-se ao vivo sempre sentada desde então. Em 2015 lança seu primeiro álbum só com canções inéditas, A Mulher do Fim do Mundo. Em 2018, sai seu disco derradeiro, Deus é Mulher.

Elza Soares faleceu dia 20 de janeiro de 2022 em sua casa no Rio de Janeiro. Na mesma data do grande amor de sua vida, o anjo de pernas tortas Mané Garrincha, 39 anos depois. Tinha 91 anos.

Ficam as palavras do maestro Ary Barroso, quando terminou de ver a moça cantar e arrebatar o prêmio máximo de seu programa: “senhoras e senhores, acabamos de presenciar o nascimento de uma estrela”.

Agora ela brilha eterna.

Ouça. Leia. Assista:

A Bossa Negra (1960) Elza Soares

Do Cóccix até o Pescoço (2002) Elza Soares

Imagens: reprodução