Desde o debate sobre os limites entre arte e vandalismo até sua consagração em galerias de arte, uma coisa é certa: não dá pra ignorar o grafite
Toda conversa sobre pichação ou grafite começa com aquela ladainha de que “os primeiros desenhos nas paredes surgiram em cavernas há milhares de anos”. E invariavelmente avança para “e mais tarde os antigos romanos e gregos escreveram seus nomes e poemas de protesto em edifícios”. Tem a ver, mas é conversa mole.
Um sujeito chamado Darryl McCray, vulgo “Cornbread” é considerado como o pai do grafite moderno, desde a Filadélfia, nos EUA, em 1960. Dizem que Cornbread se apaixonou por uma garota chamada Cynthia Custuss e começou a escrever “Cornbread Loves Cynthia” para chamar sua atenção. Ele gostou tanto que continuou a infestar a Filadélfia com seu nome. Foi Cornbread pra todo lado, ofuscando os pais da Independência e suas estátuas na distinta cidade norte-americana.
No final dos anos 1960, o grafite aportou em Nova York. As pessoas começaram a escrever seus nomes — ou tags, etiquetas — feito logomarcas pessoais, em prédios por toda a cidade. Em meados dos anos 70, era difícil para um passageiro conseguir enxergar alguma coisa através de uma janela no metrô, porque os trens estavam completamente cobertos de spray.
Nos primórdios desta fase do grafite, os pichadores faziam parte de gangues de rua e a intenção principal era demarcar seu território. Eram as chamadas “crews” (equipe, time) que realizavam o “serviço”, como um grupo de guerrilha ou assalto mesmo. Foi o escritor Norman Mailer quem cunhou o termo graffiti pela primeira vez, em texto para o New York Times.
Capitaneadas pelo gênio visionário de Andy Warhol, algumas galerias de arte em Nova York começaram a comprar grafites no início dos 1970. Entretanto, ao mesmo tempo em que começou a ser considerado uma forma de arte, o prefeito de Nova York à época declarou a primeira guerra ao grafite. Na década de 1980, começou a ficar mais difícil pichar nos trens do metrô. Muitos grafiteiros consagrados começaram a usar telhados de prédios ou, no limite do “domesticado”, usavam telas. A conversa sobre o grafite ser arte ou vandalismo ainda está em curso. E é invariavelmente pra lá de fiada.
Ao longo de décadas, o grafite tem sido uma espécie vitrine para a fama de uns e outros. Jean-Michel Basquiat começou a aparecer nas ruas de NY em meados da década de 1970, e com o auxílio luxuoso de Andy Warhol se tornou um artista respeitado nos 80. O francês Blek le Rat e o artista britânico Banksy alcançaram fama internacional ao produzir trabalhos complexos com estênceis, muitas vezes tecendo comentários políticos ou humorísticos em imagens. Algumas obras de Banksy (cuja identidade é mantida em segredo) foram vendidas por mais de 100 mil libras.
Há contradições bastante notáveis, algo muito comum quando o assunto é moda ou arte, uma vez que as leis do mercado entram fundo na coisa, logo de cara. O exemplo que vem à mente de imediato é uma mostra de Banksy que estava em cartaz em São Paulo no início de 2023. A galeria é em um shopping center, e o ingresso custava a bagatela de 80 reais. Das ruas para as galerias, tudo certo. Só que na rua, o ambiente natural da obra, a coisa era obviamente gratuita.
O grafite é muitas vezes associado a subculturas como a rebelião contra a autoridade, pura e simplesmente. “Diretas Já!” ou “Abaixo a Ditadura”, por exemplo, e no caso pichação, de fato. Em suas origens — ou consequências — no entanto, foi o meio de expressão utilizado para exibir publicamente as expressões artísticas em resposta à falta de acesso a museus e instituições de arte. Além, é claro, de ser um libelo natural que apresenta o conflito, expondo a discriminação e a luta de quem vive nas grandes cidades do mundo.
O grafite em essência é ilegal. Uma forma de arte que nasceu no submundo, com pouco dinheiro e oferecendo voz aos excluídos, artistas ou não. Por outro lado, também foi ferramenta para expressão de opiniões políticas, identitárias, e até religiosas. Cultural até a medula.
Há uma conferência brilhante e encantadora de Paulo Leminski em um dos anfiteatros da Reitoria da UFPR em Curitiba, dos 1980’s, no qual ele desvenda o signo do grafite de forma absolutamente genial. O vídeo com um trecho da conferência pode ser assistido ao fim desta crônica.
É uma narrativa paralela à imagem predominante acerca da vida nos guetos e na periferia de forma geral. A exemplo de outras formas de arte, o grafite tornou-se uma ferramenta de resistência, mas sobretudo de empoderamento, transformando o próprio espaço do artista em relicário de educação e cultura popular.
Comumente reconhecido como uma forma de arte pública nos dias de hoje, a arte do grafite foi abraçada por museus, críticos e instituições. Mas sua essência permanece nos bairros da periferia, reafirmando a importância da acessibilidade e inclusão em relação à sua identidade.
Citando o citado Leminski, “o grafite está para o texto assim como o grito está para a voz”. Ou “palpite, o grafite é o limite”.
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Ouça. Leia. Assista:
Leminski e o Grafite – UFPR, 1983
Basquiat – filme completo – 1984
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Imagens: reprodução