A arte de desabrochar tardio. Notas sobre tempo, desejo e ilusão de linearidade.


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Há algo profundamente subversivo na figura do late bloomer – aquele que desabrocha tarde, como uma flor que desafia a estação esperada. Essa metáfora botânica provoca nossa obsessão moderna por cronometrar a vida. Como se o nosso psiquismo pudesse obedecer aos relógios do mundo externo. As pulsões têm temporalidade própria, às vezes circular, caótica, raramente linear. Estamos em débito sobre como ‘quando’ e ‘como’ devemos ser bem-sucedidos. Lacan, por sua vez, diria que o sujeito está sempre em débito com o Grande Outro — a instância simbólica que funciona como uma autoridade abstrata e impessoal que media a relação do sujeito consigo mesmo e com o mundo. Mas e se o Grande Outro estiver errado?

Sobre o mito da juventude como gênese do sucesso o economista David Galenson analisou a relação entre a idade e a criatividade em diversas áreas, incluindo a literatura. Seu trabalho foi amplamente discutido como um contraponto ao mito de que a juventude é o ápice da produção criativa. A pesquisa de Galenson mostra que a relação entre tempo e criatividade é complexa e varia conforme o tipo de trabalho. Enquanto alguns gêneros (como poesia ou matemática teórica) podem favorecer prodígios jovens, outros (como romance ou filosofia) exigem experiência acumulada, tornando a “idade de ouro” algo relativo.

A genialidade, parece, não é filha do tempo cronológico, mas de um tempo outro, um tempo interior que Freud chamaria de Nachträglichkeit (o “après-coup”), no qual o passado só se revela plenamente em retrospecto. A vida, portanto, não é uma escada a subir, mas um labirinto a percorrer, com becos, atalhos e praças onde nos sentamos para descansar, mesmo que a neurose nos sussurre: “Continue, você está ficando para trás!”.

Aqui, a psicanálise nos oferece uma saída elegante. Para Lacan, o desejo é sempre desejo do Outro, mas também é aquilo que escapa à captura simbólica. Quando um artista lança seu primeiro trabalho aos 60 anos, ele não está “atrasado”, mas respondendo à urgência que só agora se fez audível, após anos de silêncios ou ainda acumulando começos que terminam por constituir um caminho. O bloom tardio é, nesse sentido, um ato de resistência: recusa-se a confundir o tempo do mercado com o tempo da alma.

Bloom que se traduz para o português como ‘florescer’, em francês se diz épanuir. Essa palavra é citada na Declaração Universal dos Direitos Humanos (Artigo 26) como o direito ao pleno florescer da personalidade. Desabrochar, mas também ocupar direções legítimas e relevantes. O caráter sintomático dessa expansão – o modo como cada um tece seu próprio sintoma em forma de arte – transforma o impossível em estilo.

Mas há um risco nessa celebração da não linearidade. Na cultura atual, embora fale de ‘resiliência’ e ‘reinvenção’, ainda venera a produtividade como valor supremo. O late bloomer é tolerado apenas se seu atraso for convertido em narrativa inspiracional: “Veja, ele persistiu!”. O desafio, porém, é aceitar que alguns desabrocham sem jamais frutificar — e isso também está bem.

Sim, o tempo corre, mas parece que somos nós que estamos fugindo. Buscamos o reino do desejo irrestrito onde o tempo não pressiona e as escolhas não precisam ser justificadas. Em Vou-me Embora pra Pasárgada, Bandeira escreve: “Vou-me embora pra Pasárgada, Lá sou amigo do rei, Lá tenho a mulher que eu quero, Na cama que escolherei.” O poema, porém, pode ser lido melancolicamente: o eu lírico nunca parte e entre o sonho e a inércia, Bandeira captura a essência do conflito humano: queremos Pasárgada, mas ficamos presos à culpa de não correr atrás dela. É o desejo sempre adiado, sempre prometido para um “depois” que nunca chega. O late bloomer, ao romper esse ciclo, rompe com a ordem simbólica pré-estabelecida e vai de encontro com o real. Na psicanálise, um paciente que para com repetições patológicas e assume uma nova posição subjetiva. Na arte, um gesto criativo que subverte convenções e faz novos sentidos. Na política, a revolução que desestabiliza a ordem.

Não é sobre quando desabrochar, mas como suportar o próprio desabrochar — inclusive suas pétalas caídas e raízes expostas. Infelicidade pode estar na tentativa de adequar o desejo às demandas sociais. O late bloomer é aquele que, mesmo inconscientemente, escolheu a via oposta: deixar que o desejo o desvie do caminho reto.