Glam rock e as crianças da revolução


Subgênero do rock que foi fenômeno no Reino Unido no início da década de 1970 apresentou músicos em suas fantasias, maquiagem e penteados extravagantes

A Grã-Bretanha do início dos 1970s já havia voltado a ser cinzenta. A agitação do “Verão do Amor” tinha arrefecido há alguns anos. Em seu lugar vieram as tensões com a Irlanda do Norte e Margareth Tatcher, que já surgia como uma liderança de crueldade contra a classe trabalhadora, com políticas de austeridade econômica e conservadorismo — algo que duraria até o início dos anos 1990. Um cenário perfeito para o que viria a seguir na música e nos costumes da juventude.

Não se sabe ao certo como surgiu, mas algo que veio a se chamar “glam rock” deu tons de um raro colorido a tal cenário. E desencadeou um tipo muito diferente de rebeldia. Em grande parte, uma reação ao espírito austero que se desenhava, e em outra medida mais uma evidência de que a cena musical ainda tinha alguns limites sólidos contra os quais era preciso pressionar. Tratava-se de música, acima de tudo, mas também do espetáculo de identidade, (tra)vestida com vestuário espetacular, e trazia um ingrediente crucial: a tensão sexual permanente.

O terreno que se apresentava em 1971, pós fim dos Beatles e aquele clima de “o sonho acabou” era um mercado de rock se reinventando. Artistas como os Rolling Stones tentavam fugir o fisco inglês indo viver e gravar na França, e a exemplo do Led Zeppelin, já planejavam seu próprio selo e ajeitavam a condução própria de seus negócios. O fato é que o clima havia se tornado algo que podemos chamar de “sério”.

O que víamos era algo surgido a partir da porralouquice do flower power do final dos anos 1960, mas com uma aura de seriedade que tomou conta daqueles jovens. Todos cabeludos, mas vestindo terninhos e jeans. Pareciam um prenúncio dos yuppies que viriam com os 1980s. Os glam rockers, em contraste com essa raça e até mesmo com os hippies que os antecederam, não queriam mudar o mundo — queriam antes escapar disso, criando uma atmosfera extravagante que se aproximava emocionantemente do território da arte performática.

O jovem londrino Mark Field havia passado grande parte dos anos 1960 procurando um lugar ao sol na indústria musical, com seu Tyranossaurus Rex. Em 1970, com um novo nome (mais curto) e uma banda construída em torno dele, mudou o rumo da prosa: surgiam ali Marc Bolan e o T.Rex. E as coisas começariam a mudar radicalmente.

Bolan emplacou o single Ride A White Swan e subiu nas paradas do Reino Unido naquele final de 1970. O próximo single, Hot Love, ficou no topo das paradas britânicas por seis semanas e realmente despertaria o som característico do glam rock. O estilo eletrizante de Bolan — algo como um mix de Oscar Wilde com Charles Dickens working class, como se isso fosse possível — fascinou os espectadores do Top Of The Pops, já um clássico programa da BBC, que fazia surgir os astros do momento. A partir daí, uma série de hits fizeram dele uma verdadeira estrela. Get It On (seu maior sucesso internacional), Jeepster, Metal Guru e Children Of The Revolution se tornaram a trilha sonora do Reino Unido até 1971 e 72.

Tudo certo até aqui. Mas o que tornava os roquinhos básicos e encantadores de Marc Bolan algo que poderia (e veio) a ser chamado “glam rock”? Nada demais. Um tanto de purpurina (glitter) na cara, roupas brilhantes e sapatos plataforma. Era a androginia, a atitude bissexual, a afinidade com o mundo feminino, a sensibilidade. Se déssemos um telefonema para o passado havia em uma ponta da linha o gênio irascível de Oscar Wilde; uma segunda ligação teria na outra ponta e apontando invariavelmente para o futuro um sujeito chamado David Bowie.

O chamado “Camaleão”, que brevemente se tornou elemento central no movimento glam rock foi Bowie. Claro, era inevitável que um talento tão prodigioso como o dele logo o levasse a direções diferentes, mas, em sua persona Ziggy Stardust, ele criou uma caricatura que parecia inteiramente inserida — para não dizer uma pedra fundamental — nesta breve época da música e do comportamento juvenil.

Mark Elliott escreveu para a Discover Music: “muito influenciado pelo trabalho de vanguarda do artista nova-iorquino Andy Warhol, Bowie se descreveu como um ‘pensador tátil que captava as coisas’, e este pseudônimo teatral, lançando sucessos como Starman e The Jean Genie em 1972 , também emprestou muito das estrelas do glam que surgiram naquele ano. O visual era andrógino, mas a mistura de pop-rock com muitos riffs atraiu os adolescentes e os fãs de música mais conformistas e maduros”.

No verão de 1973, Bowie aposentou Ziggy em um show lendário no Hammersmith Odeon. Ele era amigo de Marc Bolan, e afirmava veementemente que o roqueiro dos anos 1950 Vince Taylor forneceu grande parte da inspiração para Ziggy, mas estava claro que o T.Rex de Bolan também ajudou a moldar o personagem.

Mas, e aquela maloqueirada toda que sempre infestou o Reino Unido desde os mods e rockers em duelos violentos nas praias de Brighton? Sob o bombardeio destes hit-parades estava, por exemplo, o Slade.  Uma banda skinhead até 1969, mas que no final de 1971, com Coz I Luv You havia liderado as paradas, “ressurgindo” com jaquetas de seda e cabelos na altura dos ombros, que substituíram seus suspensórios e coturnos.

Apropriadamente, o Slade já havia feito um pequeno sucesso com um cover de Little Richard, mas isso estava em um nível totalmente diferente. Talvez seja difícil imaginar agora, mas o Slade foi um fenômeno pop doméstico. A banda se tornou o primeiro grupo a ter três singles entrando nas paradas do Reino Unido em primeiro lugar. Suas músicas furiosas e propositalmente estúpidas, como Take Me Bak ‘Ome e Mama Weer All Crazee Now, conseguiram chegar ao topo das paradas britânicas em apenas 24 meses. Os figurinos ficaram mais coloridos à medida que os sucessos continuavam chegando, mas o eterno clássico de Natal, Merry Xmas Everybody, lançado no final de 1973, provaria o auge da banda, com seu sucesso praticamente encerrado na época em que os punks estavam começando. O Slade vive até hoje da “fase glam” de sua longa existência.

Não poderíamos falar dos maloqueiros britânicos sem citar o Sweet. O quarteto fez sua estreia na tevê em 1971 com hits potenciais como Co-Co e Funny Funny, mas atingiu o pico com os hinos Blockbuster e Ballroom Blitz, sucessos absolutos na boca da galera até hoje.

E havia os caras que não eram assim “tão rock”, mas flertavam com o glam. Um nome vem de imediato: embora possa parecer exagerado, mas no início da carreira Elton John também flertou com os sons e a aparência do glam rock. Com a predominância do estilo “balada suave” que dominaria sua carreira, seus sucessos da época incluíam rocks legais como Saturday Night’s Alright (For Fighting) e Crocodile Rock. Elton era adequado em sua teatralidade irreverente, e contribuiu para o brilho-purpurina do movimento.

Não tardou para gravadoras se especializarem no gênero. Selos como a RAK se aproveitaram de bandas como Iron Virgin, Screemer e Jimmy Jukebox, que não conseguiram entrar nas paradas. Mas a avassaladora Can The Can fez da norte-americana Suzi Quatro uma estrela. Liderou as paradas do Reino Unido em 1973.

​O segundo sucesso de Suzi no Reino Unido, Devil Gate Drive, seria o último, mas sua carreira seguiu em frente e ela mantém uma legião de fãs até hoje. Suzi, ao menos para o redator aqui, foi um ícone da “mulher em calça de couro”, ao lado de Julie Newmar (a Mulher-Gato do Batman). Até hoje. Certo. Eu a amo profundamente, desde os 5 anos de idade. Quase morri quando o show dela foi cancelado devido à pandemia. Cai o pano.

A influência do glam também pode ser vista em outras bandas pop da época, incluindo a boy band escocesa Bay City Rollers e Slik. Ainda Wizzard, Alvin Stardust e The Rubettes também obtiveram sucessos pop glam de tamanho considerável. Além de tótens do pop incontestável como a Roxy Music, liderada pelo graduado em Belas Artes Bryan Ferry, e o mago dos sintetizadores Brian Eno. For Your Pleasure é um álbum clássico absoluto, sucesso de público e crítica até hoje.

Outra banda mergulhada na arte da performance foi Sparks. Os irmãos Ron e Russell Mael se mudaram da costa oeste dos Estados Unidos para o Reino Unido em 1973, e o álbum Kimono My House do ano seguinte foi uma estranheza ambiciosa e excêntrica.

Se Sparks e Roxy Music mantiveram sua apresentação visual com o lado certo do bom gosto, Alice Cooper fez exatamente o oposto com um toque sadomasoquista vistoso que ajudou sua notoriedade a subir. Para aqueles que foram além do show de horrores, “Tia Alice” era claramente um showman(woman?) consumado que também conseguia escrever excelentes canções.

Lou Reed, que deixou o The Velvet Underground em agosto de 1970, veio à capital do Reino Unido para gravar seu primeiro álbum solo. Embora isso não tenha feito muito progresso, seu sucessor produzido por Bowie e Mick Ronson, Transformer, foi uma obra-prima, coroada com o hit clássico Walk On The Wild Side.

Os New York Dolls, formados no início de 1972, fundiram o glamour com composições mais extremas, e sua estreia autointitulada em 1973, produzida por Todd Rundgren, foi um enorme sucesso de crítica.

Naquela época, o pop havia claramente avançado e a influência do glam rock se infiltrou no movimento de contracultura do punk, que logo transformaria a indústria musical para sempre.

Recomendamos aqui especialmente o filme Velvet Goldmine (Tod Haynes, 1998), que ficcionalizou a história de uma estrela glamourosa dos anos 1970. Ewan McGregor interpreta um de seus melhores papeis.

No mais, é carnaval. O glam está aí. Especialmente se você mora em alguma cidade grande do Brasil, na qual é impossível descer à padaria comprar um pão sem voltar com um pouco de glitter na cara, um tapa-olho de pirata, ou um chapéu de Carmen Miranda.

Afinal, somos todos, de alguma estranha forma, crianças da revolução.

Aproveite.

Ouça. Leia. Assista:

Velvet Goldmine – filme completo legendado

Children Of The Revolution: How Glam Rock Changed The World – por Mark Elliott

Imagens: reprodução