Há 50 anos, dupla de humoristas Chico Anysio e Arnaud Rodrigues realizou trabalho que superou todas as expectativas, e foi marcante na crítica ao regime. Disco vai fundo no retrato sociopolítico do período
O urubu tá com raiva do boi
E olhe eu sei que ele tem razão
O urubu tá querendo comer
Mas o boi não quer morrer
Não tem alimentação
Os versos da canção de Geraldo Nunes e Venâncio, que retratam à perfeição o cenário político brasileiro de qualquer época, é dos sons mais emblemáticos contidos em um álbum improvável, de 1974. Lançado pela gravadora CID, Sangue no Cacto, do grupo ainda mais improvável Baiano & Os Novos Caetanos, fez grande sucesso e consagrou uma feliz parceria entre os humoristas Chico Anysio e Arnaud Rodrigues.
A citada canção Urubu tá com Raiva do Boi é a única sem participação de Chico ou Arnaud nas autorias, em todo o elepê. O grupo, formado só por feras do instrumental brasileiro, surgiu quase por acaso, de um quadro do programa Chico City, comandado por Chico Anysio na Rede Globo, no começo de 1973, no qual sacaneavam o comportamento dos tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre outros. No então pseudogrupo, Chico é “Baiano”; Arnaud é “Paulinho Cabeça de Poeta”.
Já com excelente trânsito e prestígio dentro da Globo e a musicalidade do parceiro Arnaud — um ator talentoso e multifacetado, cheio de malandragem, músico e jogador de futebol — não tardou à dupla (que arrasava no programa) bater à porta do braço radiofônico da emissora, a gravadora Som Livre. A intenção era gravar um álbum.
Conseguiram. Em suas composições, das quais participam até a lenda Orlandivo — e da banda que contava com nomes como o guitarrista Renato Piau — há pitadas de rock, nordeste, samba, choro, funk e soul. A direção artística ficou a cargo de Durval Ferreira, que tinha grande parceria com Eumir Deodato, no grupo Os Gatos.
Chico e Arnauld viram seu primeiro álbum chegar a outros públicos que não a intelectualidade estudantil, que a MPB e o rock atingiam. Sangue no Cacto foi um fenômeno popular, apesar da imensa sofisticação que trazia em si, em todos os aspectos, do conteúdo aos arranjos.
Como refletiu Marcelo Pinheiro sobre o álbum, em 2018: “por mais cifradas que fossem as mensagens contidas no álbum, pequenos recados (…) instigavam o ouvinte a suspeitar que as coisas não andavam nada bem no seu amado Patropi”. Pinheiro se refere, entre outros, ao poema que ilustra a canção Nêga: “faço do meu canto a neura existencial / o conteúdo do cotidiano, o dia a dia da vida / a eletrônica está substituindo o coração / a inspiração passou a depender do transistor / o poeta de aço, de poesia programada, é demais para os meus sentimentos, tá sabendo?”.
Quer dizer, os caras previram a Inteligência Artificial ainda em 1974? Não duvidem. Estamos lidando com dois sujeitos realmente geniais e (à época) cheios da energia vital da contracultura. Chico já trazia consigo a visibilidade global e a fama de “maior humorista do Brasil”, que sustentaria até os dias atuais. E Arnaud era puro suingue e talento.
Só que, ao invés da superficialidade natural quando o assunto é humor/entretenimento, muitas questões absolutamente urgentes do cotidiano do país acabaram sendo apreciadas pelos ouvidos do povão. E na boca do povo foram emitidas ao modo “rir pra não chorar”.
Havia o regime. A tortura, as prisões, a repressão braba. E um tal “milagre econômico”, mais um daqueles truques da Ditadura para dar a ilusão de que o país crescia em meio a obras de infraestrutura como Itaipu e a ponte Rio-Niterói, mas a troco de imensa dívida externa, que ajudou a legar ao país uma submissão sem limites ao FMI, que duraria décadas ainda.
E o tal “milagre” foi alvo constante de Baiano & Os Novos Caetanos. Em Aldeia, o recado: “em cada rosto uma expressão / em cada bucho a digestão / um novo carro / nova capa / enquanto o velho me pede pão / o pão nosso de cada dia dão-nos hoje / creditai nossas dívidas / assim como não nos perdoam nossos credores”. E daí, no meio, o discurso de Baiano: “o medo, a angústia, o sufoco, a neurose, a poluição, os juros, o fim… / nada de novo / a gente de novo só tem os sete pecados industriais (…) / aí a gente encontra um cabra na rua e pergunta: ‘tudo bem?’ / e ele diz pra gente, ‘tudo bem!’ / não é um barato, Paulinho? / é um barato! (…) / nada a dizer… nada ou quase nada / o que tem é a fazer: tudo / na rua, a obra do homem, o cheiro de gás, o asfalto fervendo, o suor batendo… o suor batendo”.
Já era um tempo no qual quase não havia mais grupos de resistência ao regime. Como reflete Marcelo Pinheiro: “a crônica desse momento está implícita, com muita astúcia, até mesmo para driblar os censores, em Sangue no Cacto, assim como em todas as escolhas futuras de Baiano e Paulinho, os pseudônimos adotados por Chico e Arnaud”.
A música que primeiro tocou no rádio e é um sucesso até hoje, Vô Batê Pa Tu, por exemplo, é retrato de um tema seríssimo: a tortura, e com ela o fenômeno do dedo-duro, o delator, e o medo que tomava conta de todo mundo. “O caso é esse: dizem que falam, que não sei o quê / tá pra pintar ou tá pra acontecer / é papo de altas transações / deduração, de um cara louco que dançou com tudo / entregação com dedo de veludo / com quem não tenho grandes ligações”, diz a letra, parceria de Orlandivo e Arnaud.
Em meio a tudo, uma estética irônica, na qual todos os elementos do grupo se vestem como hippies irremediáveis, especialmente os personagens Baiano e Paulinho. Soa ao mesmo tempo como uma sacanagem com os “ripongos” e uma homenagem, ou menção carinhosa, se assim dá pra ser dito.
O fato é que a qualidade musical de Sangue no Cacto (o álbum não tem este nome na capa, mas no encarte, é bom lembrar) é absoluta. E não foi algo efêmero, ou um fenômeno passageiro, uma modinha. A parceria entre Chico e Arnaud iria muito longe com mais três álbuns do grupo: Baiano & Os Novos Caetanos – Volume 2 em 1975, A Volta em 1982, e Sudamérica, de 1985.
Além deles, ao lado de Arnaud, Chico produziu, em 1975, outra pérola: o álbum Azambuja & Cia, que conta entre outros com o trio Azymuth como banda de apoio. Entre o álbum de 1975 e o de 1982, Chico lançou também Baiano e Amaralina (1977) com a atriz e cantora Nádia Maria.
Antes, Arnaud lançara seu título solo Murituri, em 1974. Título raro e obrigatório é um trabalho vigoroso e consistente, com o guitar-hero tropicalista Lanny Gordin. Em 1976, lançou também O Som do Paulinho. Todos excelentes.
Segundo o próprio Chico Anysio, “com o sucesso de vendas do primeiro elepê, o senhor Harry Rozemblit, dono da companhia de discos CID, comprou três coberturas na avenida Delfim Moreira (localizada no Leblon, um dos mais caros endereços da zona sul carioca). O Eddie Barclay (dono do selo francês Barclay), na época, nos convidou para ir à Europa para participar do Miden, em Cannes, e eu não fui. Disse a ele que tinha que fazer um show em Curitiba. Que loucura a minha! Ele ficou sem entender. Como é que dois artistas esnobavam um dos maiores encontros da música internacional do planeta?!”.
Vô Batê Pá Tu ganhou uma releitura da cantora sueca Sylvia Vretmar.
Chico Anysio é um dos maiores humoristas do Brasil em todos os tempos. Era também escritor de mão cheia, roteirista, criador de tipos inesquecíveis e ainda por cima, como pudemos ver e ouvir, cantor e compositor de primeiríssima linha. Morreu em 2012, aos 80 anos.
Arnaud nasceu em Pernambuco em 1942. Trabalhou como ator, redator e roteirista em cinema, tevê, rádio, teatro, música e futebol. Em 1999, realizando dois shows na cidade de Palmas, decidiu se mudar com a família para o Tocantins, onde assumiu a função de dirigente do Palmas Futebol e Regatas. Faleceu em 2010, após um trágico acidente de barco no rio Tocantins. Tinha 67 anos.
Aquilo que era para ser apenas um quadro humorístico, acabou se tornando um dos trabalhos musicais mais consistentes e interessantes dos anos 1970 e 80.
Sangue no Cacto: o nome correto de um álbum que só vim a descobrir hoje, 50 anos depois de seu lançamento, apesar de tê-lo fisicamente em algum momento da vida.
Baiano & Os Novos Caetanos. Eis uma ironia realmente fina.
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Ouça. Leia Assista:
O desbunde tropicalista de Chico Anysio e Arnaud Rodrigues, por Marcelo Pinheiro
Baiano e Os Novos Caetanos – Sangue no Cacto – 1974
Baiano e os Novos Caetanos – Volume 2 – 1975
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Imagens: reprodução