Marvel lança nova luz sobre as origens do ilustre monstro, tornando obscura a infância de Bruce Banner e dando novamente tons de humanidade a um personagem de seu universo
A maioria dos fãs de quadrinhos conhece a história da origem deste super-herói. Sejam eles nerds, leitores ocasionais ou gente que assistiu alguns dos filmes ou séries que foram desenrolados ao longo das suas seis décadas de existência. Quase um chavão da época (pós-Segunda Guerra, Guerra Fria e a iminência de uma guerra atômica que povoava a mente de todos, naquele início de 1960’s), era comum a origem de um herói ter a ver com acidente nuclear ou coisa semelhante. Enfim, o cientista Bruce Banner foi pego em uma explosão de raios gama com os quais ele próprio desenvolvia pesquisa, e acaba se transformando em uma criatura gigante verde (como os raios gama), à qual deu-se o nome de “Hulk”, toda vez que se encontra em alguma situação limite que eleve seu estresse ao máximo.
Ao longo dos anos, outras equipes de redatores e desenhistas foram expandindo tais características. Com o tempo, nos moldes da psicanálise, leitores foram aprendendo que o Hulk é a personificação física da raiva do doutor Banner. Em seguida, outro passo adiante foi dado na direção de expandir a personalidade do personagem: essa raiva e fúria são resultado de anos de abuso nas mãos de seu pai. Já edições recentes de The Immortal Hulk agora adicionaram mais um elemento à origem do grandalhão esverdeado: que o Hulk é na verdade o amigo imaginário de infância de Bruce Banner.
No roteiro de Tempus Fugit que percorre The Incredible Hulk entre os números 77-81, Peter David, considerado por muitos como o escritor definitivo do Hulk, formou equipe com os desenhistas Lee Weeks (Demolidor) e Tom Palmer (Tumba de Drácula) para lançar essa nova luz à origem do Hulk. Certamente vai surpreender muita gente. E revoltar a muitos. Sabemos como é um nerd quando dá pra ser reacionário. Vão dizer que é lacração, mimimi e deturpação das origens.
Na nova abordagem, os leitores vão descobrindo por meio de uma série de flashbacks que o Hulk era o nome do amigo invisível do pequeno Bruce, provavelmente desenvolvido como uma resposta ao trauma que o garoto sofria (o dos abusos, que foram inteligentemente mantidos na história). Bruce continuaria a falar com o Hulk em sua adolescência, em sequências nas quais aparece com ele sentado a seu lado na sala de aula, conversando e tudo. Há inclusive uma passagem na qual Banner defende uma garota em uma briga no recreio, contra seu namorado machão e igualmente abusador. Hulk o aconselha a “não dar uma de herói”.
Não é novidade que o Hulk sempre pareceu de fato uma metáfora para a raiva reprimida e o trauma não apenas de Bruce Banner, mas também de toda gente, além de uma crítica embutida a uma sociedade que já parecia doente, como descrito anteriormente — um mundo de guerras, racismo, luta pelas liberdades individuais e sexuais, da mulher, contracultura, drogas, rock, ditaduras, o mundo era um caldeirão no período em que surgiu o personagem.
Algumas crianças em situações semelhantes às vividas por Bruce Banner no enredo acabam desenvolvendo amigos imaginários como uma espécie de fuga. Na visão dos novos criadores do Incrível Hulk, com Bruce não foi diferente.
O diferencial, é claro, está no fato de que seu amigo imaginário eventualmente ganharia vida e o amaldiçoaria pelo resto de seus dias. Os leitores podem ver a natureza do Hulk aparecendo o tempo todo — na referida briga em sala de aula, ele diz a Banner para não defender a mocinha, mas Banner desobedece, e toma um cacete. E é óbvio que o colega de classe era uma espécie de antagonista natural de Banner. Assim desenrola-se o roteiro nessa fase teen do monstro verde mais popular dos quadrinhos.
Ao desenvolver o amigo imaginário de infância de Banner como sendo o Hulk que apareceria “real” depois, Peter David e sua equipe adicionaram outra camada. Seu trauma era tão grande que acabou mantendo o amigo imaginário por sua adolescência. Em devaneio que se apresenta, entende-se que Banner acaba sendo obrigado a se tornar aquela criatura para sair vivo do período. Constata a psicanálise que a maioria dos amigos imaginários de infância desaparece pouco antes da puberdade, mas o de Bruce Banner não “foi embora”. Acaba sendo fundamental para o desenrolar que a maioria dos leitores conhece há décadas.
O Incrível Hulk apareceu pela primeira vez em The Incredible Hulk número 1 em maio de 1962, escrito pelo mestre e mandachuva da Marvel Comics Stan Lee, desenhado pelo seu maior parceiro Jack Kirby e Paul Reinman. Stan Lee dizia ter se inspirado nos clássicos da literatura Frankenstein e Dr. Jekyll & Mr. Hyde na criação do personagem.
Até, então, o Coisa (Quarteto Fantástico) era o personagem mais popular que mantinha alguma similaridade com o que viria a ser o Hulk. Stan Lee declarou certa feita: “durante muito tempo, eu estava ciente do fato de que as pessoas eram mais propensas a favorecer alguém que não era perfeito. É seguro apostar que você se lembra de Quasimodo (de O Corcunda de Notre Dame), mas com que facilidade você pode nomear qualquer um dos personagens heroicos mantendo aquelas características? (…) Ninguém jamais pôde me convencer de que ele era o cara mau. Ele nunca quis machucar ninguém; ele apenas tateou seu caminho tortuoso por uma segunda vida tentando se defender, tentando chegar a um acordo com aqueles que procuravam destruí-lo. Assim, decidi que também poderia pegar emprestado do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde alguma coisa para nosso novo protagonista, que mudaria constantemente de sua identidade normal para seu alter ego sobre-humano e vice-versa”.
Pausa para o nerd que reside dentro do escriba, aqui na câmera dois, por favor: Stan Lee é nosso herói. Gênio!
Um dos personagens mais icônicos da cultura pop, Hulk apareceu em uma variedade de produtos. Desde roupas e itens colecionáveis, a várias mídias. Vídeo, filme, live-action, desenho animado e videogame. O personagem foi interpretado pela primeira vez fora dos quadrinhos e desenhos animados por Bill Bixby (Banner, retratado erroneamente como “David Banner”, até hoje um mistério, já que na HQ era “Robert Bruce Banner” seu nome completo) e Lou Ferrigno (Hulk) na série de televisão de 1978 The Incredible Hulk. A série ganhou os filmes de televisão subsequentes The Incredible Hulk Returns (1988), The Trial of the Incredible Hulk (1989) e The Death of the Incredible Hulk (1990). Depois foi interpretado por Eric Bana no filme Hulk (2003).
Já no recente Universo Cinematográfico Marvel (MCU), o personagem foi interpretado pela primeira vez por Edward Norton no filme O Incrível Hulk (2008) e depois por Mark Ruffalo em Os Vingadores (2012), Homem de Ferro 3 (2013), Vingadores: Era de Ultron (2015), Thor: Ragnarok (2017), Avengers: Infinity War (2018), Captain Marvel (2019), Avengers: Endgame (2019), Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings (2021), a série de televisão She -Hulk (2022), e a série animada What If…? (2021), o que faz de Ruffalo o ator que mais encarnou o Hulk em toda história.
A Marvel segue humanizando cada vez mais seus personagens. Ruffalo enfureceu aqueles citados nerds mais reacionários e conservadores ao declarar apoio à eleição do presidente Lula no pleito de 2022.
Como seria explicar a estes reaças que além de Hulk ter se transformado em “um sensível amigo invisível fruto de traumas e abusos sofridos”, Bruce Banner ainda está do lado certo do espectro? E seu amigo imaginário também. Não o deixem nervoso. É só um conselho.
Hulk fez o L.
…
Ouça. Leia. Assista:
The True Origin of Hulk Isn’t What Marvel Fans Think – site Screen Rant
The Immortal Hulk – Get Comics – PDF
Hulk Cartoon 1966 – completo
…
Imagens: reprodução