Em Os Fabelmans, Spielberg conta como superou os próprios “demônios”


A assinatura de Steven Spielberg na direção e produção de um grande filme é como especial do Roberto Carlos em véspera de Natal: todo ano tem. Em 2022, não foi diferente. Os Fabelmans estreou em setembro, no Festival de Cinema de Toronto, e logo foi aclamado como a melhor obra do grande mestre de Hollywood nos últimos 20 anos. A frase pode soar como mais um exagero do departamento de marketing. Mas não é.

 

“Os Fabelmans”
(The Fabelmans, 2022, Universal Pictures)
Diretor: Steven Spielberg
Onde ver: Em cartaz nos cinemas

 

De fato, Os Fabelmans é um dos melhores filmes realizados por Spielberg, ao lado de E.T., Tubarão, A Lista de Schindler, A Cor Púrpura, Império do Sol, Contatos Imediatos de Terceiro Grau e O Resgate do Soldado Ryan. Repararam? Todos são de antes de 2002. O novo filme entra nessa lista sem maiores discussões porque é um Spielberg fazendo o que Spielberg sabe fazer de melhor: cinema homenageando o cinema; dirigir crianças e adolescentes; e manipular emoções da plateia com direção e timing perfeitos.

 

Os Fabelmans é autobiográfico e conta, com riqueza de detalhes, intimidades da família do cineasta durante a infância e a adolescência. Dos sete aos 18 anos, precisamente. É o período em que Spielberg cumpre a passagem do garotinho que se encanta pela primeira vez com o cinema assistindo ao clássico O Maior Espetáculo da Terra (The Greatest Show on Earth, 1952, Cecil B. DeMille) até conhecer na juventude o gigante da indústria cinematográfica John Ford, quando as portas começavam a abrir para o seu talento nato.

 

Entre um fato e o outro, ele conta toda a história que o leva à paixão pelo cinema, enquanto sofre com as dores do amadurecimento e vive um profundo drama familiar, a primeira paixão e o dilema entre a ciência e a arte. No final, Os Fabelmans é sobre como Spielberg superou os próprios demônios internos que agora expõe nas telas dos cinemas e TVs do mundo inteiro. Sucesso absoluto de crítica e público, candidato a todos os principais prêmios de Hollywood durante 2023.

 

Na verdade, o cineasta já havia tratado desses assuntos pessoais no documentário Spielberg, da HBO, em 2017, em que os seus pais contaram sobre a crise familiar. Na época, o diretor havia declarado estar se sentindo “assustado e intimidado” por ver a sua história sendo contada em um documentário. Cinco anos depois, esse temor parece ter se dissipado. Lógico que muito do que está no filme é romantizado ou até ficcional. Mas isso não importa. Em Os Fabelmans, Spielberg abre o coração para fazer declarações de amor ao cinema e aos pais.

 

O amor incondicional à mãe e ao pai é descortinado com a naturalidade de quem não os culpa pelos seus atos, embora isso represente uma imensa dor contida no peito. Mesmo tendo mais ligação e maior afetividade com a mãe (a arte), que primeiro percebeu o seu talento precoce, jamais se afasta do pai (a ciência) que, embora considerasse o cinema um mero hobby e não uma profissão, estimulou o filho adquirindo os primeiros equipamentos Super-8. Spielberg deixa clara a influência da dicotomia “Arte X Ciência” em sua vida.

 

O cineasta, porém, não apresenta esse dilema como um embate ou um confronto. E, sim, como um processo do seu crescimento pessoal e como gênio do cinema moderno. Spielberg nos conduz, com a maestria de sempre, para contar também que, dessa dicotomia, evoluiu o seu talento que uniu o dom artístico à curiosidade científica. Não por menos é autor de marcos da ficção científica de Hollywood, como ET, Contatos Imediatos…, Poltergeist e Inteligência Artificial. Muito da notoriedade de Spielberg vem das inovações tecnológicas que promoveu na indústria cinematográfica.

 

É essa a magia do roteiro escrito a quatro mãos com o antigo parceiro Tony Kushner, com quem já havia roteirizado Munique (2005), Lincoln (2012) e Amor, Sublime Amor (2021). Embora os dois alimentassem o projeto há algum tempo, foi durante a pandemia, em 2020, que sentaram definitivamente para escrever Os Fabelmans. Curiosamente, somente depois da morte do pai de Spielberg naquele ano. A mãe já havia falecido em 2017.

 

Para dar vida aos dois, Spielberg conta com atuações comoventes e sensíveis de Michelle Williams e Paul Dano nos papéis da mãe Mitzi e do pai Burt. O núcleo familiar conta ainda com as irmãs Natalie e Regie, interpretadas por Aline Bracie e Birdie Borria durante a infância e Keeley Karsten e Julia Butters na adolescência. Sempre no convívio deles, o melhor amigo de Burt, Bennie, desempenhado por Seth Rogen. É esse o universo familiar de Sammy em torno do qual se desenrola a trama.

 

Interpretado na infância pelo garotinho Mateo Zoryan (muito fofo!), na puberdade e adolescência é Gabriel LaBelle quem assume o papel de Sammy, o Spielberg “na vida real”. O jovem estreante é uma grande promessa. De cara, levou o prêmio de Melhor Ator ou Atriz Revelação do Critic’s Choice Award que aconteceu no último dia 15 de janeiro. O Spielberg dele é contido e amargurado no dia a dia, mas intenso e empolgado sempre que se envolve com o cinema. Típico adolescente de grande futuro que ainda não se descobriu na vida.

 

O departamento de marketing está certíssimo em reforçar a ideia de que Os Fabelmans é o melhor Spielberg das últimas duas décadas. O filme é uma celebração e louvor ao cinema. Enfim, o grande mestre se fez arte! E, para comemorar, nos brinda com David Lynch como cereja no bolo no final da festa. E Viva o Cinema!