Miles Davis realizou há 62 anos sua obra-prima mais reconhecida, e o disco de jazz mais vendido da história. Seu legado ainda é atual e preciso
Em março de 1959, quando o tempo costumava esquentar na América do Norte, o 30th Street Studio em Nova York presenciou no interior de suas dependências uma reunião de músicos com peso suficiente para abalar as estruturas do prédio.
Bill Evans no piano, John Coltrane no sax tenor, Julian “Cannobal” Anderley no sax alto, Paul Chambers no baixo e Jimmy Bobb na bateria. No comando, o já requisitado e prestigiado trompetista e compositor Miles Davis.
Davis não ensaiou com sua superbanda. Entregou a cada um partituras com esboços dos temas, sobre os quais ia conduzindo a rapaziada. Na produção estava Irving Towsend (1920-1981). O resultado foi Kind of Blue, lançado em agosto daquele ano pela Columbia.
Miles buscava já havia algum tempo uma espécie de “fuga” do bebop e do hard bop, um jeito mais “pesado” e rápido de se tocar o jazz, desde a praticamente extinção das big bands devido às dificuldades impostas pela Segunda Guerra Mundial, que fez os músicos se reunirem em números menores para suas gigs.
Miles vinha paulatinamente ensaiando um estilo diferenciado, que remetia a batidas mais lentas e divagações de cunho bastante pessoal. Uma grande influência foi o livro Lydian Chromatic Concept of Tonal Organization, do pianista George Russell, de 1953. A proposta consistia de que as improvisações do jazz partissem de acordes e mudanças de acorde. Miles concebera a partir destes preceitos o trabalho esboçado naquela sessão de gravação, que se daria em apenas dois dias (aquele 2 de março e depois em 22 de abril).
Pelo que conta Eric Nisenson, autor do livro The Making of Kind of Blue, “nenhum dos seis homens que dele participaram saiu do estúdio da 30th Street com a sensação de ter acabado de criar uma obra-prima”. É verdade, mal pensavam na mais remota possibilidade de o disco ser um fenômeno de vendas. Pois é até hoje o álbum de jazz mais vendido da história, com 5 milhões de cópias e seus felizes proprietários. Eles sabiam apenas que tinham feito uma gig genial e que tinham gravado algo original.
Todos os músicos do disco, tirante Cobb, o baterista, morreram muito cedo. Todos sem exceção também tiveram importância na história com suas obras solo. Muito especialmente Bill Evans e John Coltrane.
Segundo o crítico brasileiro João Máximo, “pode parecer exagerado elevar Kind of Blue à categoria de melhor álbum de jazz da história. Mas é sem dúvida o maior acontecimento do gênero”, que com a ascensão do blues e do rock’n roll, e ainda o soul, começava a se tornar “música para entendidos”, quando há menos de duas décadas passadas era o gênero mais popular.
Ainda segundo Máximo: “por tudo isso, é disco obrigatório que jamais deixará de ser editado, mesmo que o streaming venha a ser o único som do futuro. A edição em CD comemorativa de seus 50 anos, lançada antecipadamente em 2008, reúne em dois volumes, além das cinco faixas originais, várias alternativas, conversas de estúdio durante a gravação e seis bônus colhidos na discografia de Davis e seu sexteto”.
Talvez o maior mérito de Kind of Blue seja o de fazer as pessoas voltarem a ouvir o jazz. Miles depois eletrificaria o gênero, sem nunca deixar de experimentar, criou o fusion, tocou com Jimi Hendrix e sempre namorou a psicodelia e o pop. Morreu em 1991, aos 65 anos.
A melhor forma de incautos amantes da música entenderem Kind of Blue é ouvi-lo. Abra um bom vinho, prepare um prato à base de macarrão, acenda seu melhor charuto ou o fumo de sua preferência. E deixe rolar.
Você vai “ver”.
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Ouça. Leia. Assista:
Kind of Blue – Miles Davis – Spotify
The Making of Kind of Blue – Eric Nisenson
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Imagens: reprodução