Antes um anti-herói, personagem criado em 1962 trouxe os problemas e anseios juvenis ao universo dos justiceiros mascarados das HQs
Quando o segundo boom das histórias em quadrinhos, a chamada Era de Prata dos Quadrinhos (1956-1970) estava pleno de pós-guerra e Guerra Fria, os super-heróis representados nas revistas eram sempre habitantes justiceiros mascarados de cidades inventadas.
Batman habitava a imaginária Gotham City. Super-Homem era de Metrópolis e o Flash da Central City. O Arqueiro e o Lanterna verdes eram de Star City e Coast City respectivamente. Além de todos estes personagens serem da DC Comics e terem surgido na Era de Ouro (anos 1940), a verticalidade e ausência de aproximação significativa com o “lado humano” eram outras coisas em comum.
Stan Lee já trabalhava na Marvel Comics, e teve a ideia de criar um personagem que se assemelhasse aos seus leitores, predominantemente adolescentes. Em 1962, com Steve Ditko, cria um personagem cuja primeira aparição se daria na Amazing Fantasy, um certo Spiderman, o Homem Aranha.
Stan Lee era um nova-iorquino de quatro costados, e não negou um endereço “de verdade” a sua nova criatura. Peter Parker é um órfão que reside no Queens, depois da ponte, junto com sua tia May e seu tio Ben. Esse detalhe começou por fazer toda diferença. Mas não foi o único.
Nerd, atrapalhado, pobre, rejeitado e alvo de bullying, Parker é o “fac-símile” de nove a cada dez adolescentes do american dream. Na trama que dá origem ao seu alter ego superpoderoso, o jovem está em uma feira de ciências, e presencia experimento sobre manuseio seguro de lixo nuclear. Um acidente acontece, com uma aranha que invade a área contaminada e pica a mão do estudante, depois morre dissolvida em radiação.
No retorno pra casa, Peter Parker quase é atropelado, mas de forma inexplicável consegue se desvencilhar do automóvel com agilidade sobre-humana. Ao longo daquele e de outros dias vai notando suas novas habilidades e testando-as. Percebe que consegue subir paredes com aderência natural, dar saltos de mais de uma dezena de metros e apresenta resistência de muitas vezes relativa ao peso de seu corpo, além de uma espécie de sexto sentido que o faz prever com antecedência qualquer adversidade que se aproxime. Parker desconfia e acerta: foi a aranha.
O garoto enfrenta muitas dificuldades financeiras e resolve ganhar algum extra participando de lutas de apostas. Em poucos rounds derrota vários adversários e passa a se sentir “o máximo” — aqui os leitores mais atentos já percebem, ou se identificam: a autoconfiança adolescente, o ego em fúria e em ascensão, que supre (nutre) a carência e necessidade de autoafirmação.
Com alguma grana no bolso, à saída de uma das lutas, o jovem presencia um assalto e pedido de ajuda, ao que faz pouco caso: “não é comigo e foda-se”. Quando chega em casa é informado que seu tio Ben fora vítima do mesmo assaltante, e morre. Isso causa crise de consciência ao rapaz, que revoltado passa a perseguir os criminosos. Mais ou menos isso.
A partir daí, está formada a personalidade conturbada do novíssimo super-herói da Marvel Comics. Acima de tudo um anti-herói, nova-iorquino com endereço próprio, trauma e culpa norte-americanos.
Não é a primeira criação Marvel com características bem situadas. O Capitão América mesmo, por trás da máscara é Steve Rogers, nativo do Brooklyn, também em NY. Só que o personagem criado por Jack Kirby ainda no período da Segunda Guerra é um jovem altruísta e patriota, que luta contra os nazistas e eleva o ideal americano às alturas.
Essa conversa do Capitão América perseguido pelo governo e avesso aos valores da sociedade só aparece depois do Homem Aranha, quando o herói ressurge após anos congelado em uma América atolada de chumbo vietnamita, preconceito e desumanidade, nos 1960’s.
O Homem Aranha mudou a característica de todos os super-heróis que vieram depois dele. Antes, eram altivos e confiantes, vencedores e com valores elevados, protetores da moral e dos bons costumes, feito o milionário Bruce Wayne e seu Batman, ou o Super Homem protetor supremo da Terra, cuja única força capaz de detê-lo era um mineral de outro planeta de nome kriptonita. Depois da picada de aranha naquele laboratório da universidade em Manhattan, tudo virou de cabeça pra baixo. Faz sentido. O mundo estava de pernas pro ar.
Os vilões, antes apenas caricatos “seres do mal”, começaram a ganhar contornos psicopatas, de desvio social, loucura e doença, que foram transferidos também aos heróis. Superpoderosos, mas falhos, humanos em demasia. Há a famosa passagem em que o Homem Aranha está em luta contra Octopus e cai na água. Sai de lá achando estar resfriado. Resfriado? Um super-herói também precisa de uma Aspirina, como qualquer ser humano.
E no caso de Peter Parker, tem problemas familiares extremos, um patrão desgraçado de ruim e contas a pagar. Stan Lee, não à toa, foi chamado de o “Homero dos Quadrinhos”.
O resto é história. A febre foi gigantesca e dura quase 60 anos de inúmeros gibis, filmes, desenhos animados, bonecos, games e uma indústria bilionária. A identificação permanece até hoje. O Aranha é um dos símbolos de Nova York. Os nerds venceram, estão no topo financeiro do mundo.
Mas sempre há nos arrabaldes das grandes cidades algum estudante perdido com espinhas crescendo em sua cara imberbe, que ainda não encontrou a radioatividade certa. Para estes, ainda e sempre, haverá um elemento que os represente.
“Sou o bom amigo da vizinhança, o Homem Aranha!”.
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Ouça. Leia. Assista:
Amazing Spiderman (1963, Marvel)
A Espetacular Vida de Stan Lee (Danny Fingeroth, 2021)
Quem é o Homem Aranha? (ECA-USP, 2015)
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Imagens: reprodução