Filho dileto da Boca do Lixo, filme iniciou a onda pornô no país e já ganhou livro e documentário contando sua história
“É sem dúvida o maior filme de SEXO EXPLÍCITO até hoje exibido. PROIBIDO e agora LIBERADO por medida judicial”, eram os dizeres estampados defronte ao Cine Windsor na avenida Ipiranga 974 em São Paulo. “E O SUCESSO CONTINUA!” anunciava um splash mais à frente em destaque na placa. O ano era 1982.
Essa história começa há coisa de três anos antes, no verão de 1979, quando o produtor e diretor Raffaele Rossi adentra altivo as dependências do bar Soberano — ponto de encontro tradicional da Boca do Lixo paulistana, no número 155 da rua do Triumpho — onde reuniam-se almoçando um tradicional bacalhau ao forno os profissionais de cinema da região.
Rossi estava à procura de Laerte Calicchio, requisitado diretor e roteirista de pornochanchadas e que trabalhara com o italiano — Raffaele era nascido em Arsiero, no Vêneto, em 1938 — em diversas produções. Ele o vê saindo do banheiro e o arrasta para fora do bar, sob o olhar desconfiado do proprietário Serafim, que cuidava de manter os copos da clientela sempre cheios, enquanto administrava o trânsito de prostitutas e eventuais traficantes ao local.
Calicchio e o amigo Walmir Dias — que já esperava lá fora — são encaminhados em meia volta na quadra para a rua dos Andradas, paralela à rua do Triumpho, onde funcionava a Empresa Cinematográfica Rossi, quase de fundos com o quintal do Soberano.
No escritório modesto, Rossi reúne os amigos em uma mesa e apresenta-lhes o exemplar de uma revista Manchete, na página onde havia uma matéria sobre o filme que estrearia em breve em telas brasileiras: o cultuado Império dos Sentidos, produção dinamarquesa dirigida pelo gênio japonês Nagisa Oshima, de 1976.
A censura era forte. Tudo tinha que passar pelo escritório da “doutora Solange” em Brasília. A referência é sobre Solange Hernandes, a temida “chefe da tesoura”. Tudo quanto era obra de arte no país tinha que ter sua assinatura, com aprovação geralmente mediante cortes apontados pelos inúmeros censores de norte a sul do Brasil. As mensagens políticas subliminares em letras de música ou peças de teatro eram o alvo principal do departamento. O “atentado ao pudor” era secundário e cortado à medida.
É claro, toda nudez também foi castigada. Mas liberada de certa forma. Acabou sendo uma válvula de escape. As formas de corte chegavam a ser engraçadas. Algo como “se há nudez com um par de seios, corte e liberem apenas um mamilo”. Assim nasceu aquilo que ficou conhecido como Pornochanchada. Enredos ingênuos com nudez tal e qual, quando vistos pelos olhos de hoje. No entanto, fez a festa dos onanistas em salas cinematográficas e os cartazes dos filmes chamavam de fato a atenção do público passante em frente às salas de exibição.
O livro Coisas Eróticas – a história jamais contada da primeira vez do Cinema Nacional (Panda Books, 2012) de Denise Godinho e Hugo Moura, que narra a saga de Raffaele Rossi em sua empreitada, descreve:
“Eram lindas aquelas mulheres nos cartazes dos filmes. A pele tinha um bronzeado inalcançável em plena capital paulistana. (…) O critério de sensualidade era diferente, beirando o ingênuo. Bastava um umbigo descoberto e um mamilo marcado na camiseta para que houvesse um festival de masturbações no cinema. (…) A realidade é que todos os caminhos para a pornografia tinham uma característica em comum. Mostravam as mulheres brasileiras. Eram elas as desejadas, as dos cartazes… (…). Mas notícias de fora chegavam rápido. As coisas eram mais quentes além do oceano”.
Raffaele Rossi enxergou no advento de Império dos Sentidos o espaço que procurava para realizar um filme de sexo explícito, diante da tímida abertura que já se apresentava com a posse do general Figueiredo como último presidente da ditadura. Laerte Calicchio e Walmir Dias tentaram demovê-lo da ideia a todo custo, pois ainda estavam filmando Boneca Cobiçada (Raffaele Rossi, 1980) e mal sabiam como se sairiam nas bilheterias com a produção atual. A obra-prima de Nagisa Oshima foi apresentada na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Rossi assistiu à película — que fez fila na quadra em torno do Masp, pela avenida Paulista — repleta de sexo explícito e, como tantos, achou “muito escatológico. Sexo é pra excitar, não pra causar nojo”. E vaticinou: “Se ele foi liberado, o nosso também vai ser!”.
Os amigos acharam que era delírio do carcamano, mas Rossi insistiu. Propôs aos amigos um pequeno teste: introduzir de forma bastante discreta uma cena de sexo explícito em Boneca Cobiçada, para sentir o “termômetro”. E daí partir para a produção de um longa-metragem todo em sexo explícito.
Foi utilizado de maneira discreta um truque de luz que tornava ambígua a penetração do ator Oásis Minniti em Vânia Bonier, e a censura liberou a cena em Boneca Cobiçada, que estreou nos cinemas em junho de 1980, sete meses depois de o Império dos Sentidos. Sem sacanagem: estava aberta a “brecha”.
Laerte Calicchio sujou as mãos de tinta em uma velha máquina Remington no escritório da rua dos Andradas, consumiu uma carteira de Hollywood e uma garrafa de conhaque em uma única noite. Até que sacou o calhamaço com o roteiro cuja inscrição na folha de rosto atendia pelo nome de Coisas Eróticas. O título foi aprovado de pronto por Raffaele Rossi, que cuidou de começar a recrutar o elenco.
Uma equipe foi deslocada ao então pacato balneário de Itanhaém, litoral sul paulista. Foram as atrizes Jussara Calmon, Zaíra Bueno, Ilse Cotrin, Marly Paluaro, Marília Nauê e Ariadne de Lima, mais Vânia. Também a dupla de atores Oásis Minniti e Walter Laurentiss. Sete mulheres e apenas dois caras. Era assim.
O enredo contava três histórias: Coisas Eróticas (que nomeou o filme), Sonho Erótico e Chifre Trocado. A ficha técnica traz como enredo a seguinte descrição: “após masturbar-se no banheiro, folheando uma revista erótica, Eduardo encontra, em um semáforo, uma bela mulata, modelo fotográfico, que o convida para um fim de semana em sua chácara. Lá chegando, Eduardo mantém relações sexuais com a modelo, enquanto Arlete, filha desta, e sua amiga se masturbam reciprocamente”, situação que gerava as demais narrativas.
Nada diferente dos argumentos nada brilhantes oferecidos pelo mar de pornochanchadas em cartaz durante toda a década passada. O diferencial estava no sexo explícito, de fato. Em que pese a clara intenção de Raffaele Rossi em ter sua fita reconhecida também pelo público amante de “cinema de arte”. Um evidente delírio, que Rossi deve ter desenvolvido ainda sob efeito do Império dos Sentidos.
Autores de livro sobre o tema, Denise Godinho e Hugo Moura também dirigiram junto a Bruno Grazziano um documentário que esmiúça a produção de Coisas Eróticas. A Primeira vez do Cinema Brasileiro (Controle Remoto, 2012) traz em seu elenco de participações depoimentos de André Barcinski, Jussara Calmon, Vânia Bounier, Walmir Dias, Eduardo Rossi (filho de Raffaele), Laerte Calicchio e outros personagens que marcaram a Boca do Lixo e participaram direta ou indiretamente da realização do primeiro filme pornográfico brasileiro.
Raffaele Rossi desembarcou no Brasil em 1954, aos 16 anos de idade. Era marceneiro e sua paixão pelo cinema nascera quando assistiu Ladrões de Bicicleta (Vittorio de Sica, 1947). Em 1964 ingressou no mundo da produção cinematográfica, vendendo equipamentos no chamado “Quadrilátero do Pecado”, que consistia do entorno da avenida Duque de Caxias, rua dos Timbiras, avenida São João e rua dos Protestantes, além da já citada rua do Triumpho, onde o “povo de cinema” de fato se reunia. Reza que a proximidade com a linha férrea, que facilitava a chegada dos equipamentos importados, mais a instalação das distribuidoras Fox e Paramount na região central é que levaram as coisas a se darem por ali. Rossi logo começou a trabalhar como montador, auxiliar de produção, assistente de direção até se embrenhar em suas próprias produções e montar a Empresa Cinematográfica Rossi, e mais tarde mudar os rumos do cinema brasileiro. Morreu em 2007, em sua chácara na região de Embu-Guaçu, onde descansava de sua atribulada vida de artista da sétima arte. Tinha 69 anos.
Coisas Eróticas conquistou desafetos como José Mojica Marins — o Zé do Caixão. Para alguns, ajudou de certa forma a acelerar o fim da Boca do Lixo, no centro de São Paulo. Levou mais de 20 milhões de espectadores ao cinema.
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Ouça. Leia. Assista:
O Homem que Calou a Boca: Uma Análise da Obra de Raffaele Rossi (Ruy Martins Sanches, dissertação, pdf)
Coisas Eróticas – a História da Primeira Vez do Cinema Nacional, de Denise Godinho e Hugo Moura (Panda Books, 2012)
A Primeira Vez do Cinema Brasileiro, filme, Direção Denise Godinho, Hugo Moura e Bruno Grazziano (Controle Remoto, 2012)
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Imagens: reprodução