35 anos do Verão da Lata


Incidente ocorrido no litoral fluminense desencadeou verdadeiro êxtase pelas praias do sul-sudeste do Brasil, ajudou a mudar paradigmas e estabeleceu moda, hábito e linguagem

O cenário era muito comum. Exatamente na passagem do inverno para a primavera, quando o clima é bastante ameno no litoral do estado do Rio de Janeiro, alguns pescadores de Cabo Frio, Paraty, Ilha Grande e Angra começaram a enxergar “cardumes” avistados por um brilho intenso e foram naturalmente em sua direção, como é comum ao ofício diário na pesca do povo caiçara.

No entanto, a maioria destes foram surpreendidos com alguma coisa batendo em seus barcos assim que se aproximavam. Eram latas prateadas, que causavam o efeito brilhante. E foram recolhidas pelos homens.

Qual não foi a surpresa quando de retorno a suas casas abriram as latas e constataram que todas elas tinham maconha dentro. E não era qualquer maconha. Era um conteúdo de qualidade diferenciada, conservado a vácuo, um tanto úmido e compacto, executado com rara sofisticação.

O mesmo ocorreu com surfistas que inadvertidamente colidiram suas pranchas com algo sólido que fora imediatamente recolhido à terra. Para estes, adeptos bastante frequentes do fumacê tradicional, foi como se Iemanjá os tivesse presenteado. Era o paraíso na terra.

Foi em torno do dia 25 de setembro de 1987, na costa fluminense, pertíssimo da cidade do Rio de Janeiro, quando foram descarregadas ao mar cerca de 15 mil latas de marijuana, que se espalharam desde o RJ até a Praia do Cassino, no Rio Grande do Sul. A este curioso incidente deu-se o nome de “Verão da Lata”.

O episódio teve origem através do Solana Star, navio que partira da Austrália e parou para recolher a carga em Singapura, no sudeste da Ásia. Seu destino final seria Miami, nos Estados Unidos. Depois de navegar por dois meses e meio, a embarcação — um cargueiro — precisou realizar uma parada de emergência na costa fluminense, já em setembro.

Acontece que a D.E.A. (Drug Enforcement Administration), dos EUA, já estava na cola de todo esquema internacional, e havia dado um alerta sobre o carregamento para as autoridades brasileiras, enquanto o navio ainda estava no meio do Atlântico.

Ao se aproximar da costa brasileira, o Solana Star começou a ser perseguido pela Marinha e Guarda Costeira, algo próximo de Angra dos Reis. Sem conseguir avistar o barco, um grupo de 15 a 20 homens participou da busca, com aeronaves, e até uma fragata e um contratorpedeiro da Marinha do Brasil. Uma operação militar que se fez necessária, dada às precárias condições de monitoramento da época. Era difícil localizar até mesmo embarcações em situação de naufrágio ou acidente, imagine como seria encontrar alguém que não queria ser localizado.

Em resumo: o contratorpedeiro da Marinha brasileira não conseguiu avistar o Solana Star. Mas o Solana Star conseguiu visualizar o navio militar.  Cientes que estavam sendo perseguidos, os traficantes optaram por se livrar da carga, que consistia em flagrante. E aproximadamente 22 toneladas de maconha foram sumariamente despejadas ao mar, próximo da Ilha Grande, na costa do Rio de Janeiro.

Algo em torno de 15 mil latas com cerca de 1,5 kg de maconha cada. Os tripulantes do Solana Star — que eram seis norte-americanos e um costa-riquenho — estavam sem comida e água potável, e desembarcaram com o cargueiro vazio no porto do Rio. Logo depois, fugiram do país incógnitos e sem dificuldades. A exceção foi o cozinheiro da tripulação, Stephen Skelton, que se encantou por uma bela brasileira, enamorou-se da moça, acabou localizado e condenado a 20 anos de prisão. Coisas do amor. Um roteiro digno de cinema.

Skelton ficou preso por um ano. Não foi possível comprovar sua relação com as latas do litoral, e a quantidade de maconha encontrada no navio era muito pequena para condená-lo por tráfico internacional. As correntes marítimas cuidaram de espalhar as latas pelo litoral paulista e fluminense, que depois chegaram até o Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Enquanto isso, já estava em curso uma verdadeira caça às latas, apesar da forte repressão policial naquela época de transição entre o período ditatorial e a democracia pelo qual o Brasil inteiro passava. A erva encontrada era considerada super forte, e ganhou o apelido de “veneno da lata”.

Cada lata de maconha poderia ser comercializada por até 500 dólares. A polícia só conseguiu apreender em torno de 2.500. O verão que se seguiu foi o céu. Inspirou uma geração de adeptos da ganja, e provavelmente iniciou uns outros tantos — caso dos caiçaras de Paraty e Cabo Frio, por exemplo, que muitos dizem até então serem apenas cachaceiros. Eles gostaram da novidade, que veio dar à praia.

E o termo “da lata” virou sinônimo de qualquer coisa que fosse legal, de excelente qualidade, alto nível, etc. A cantora Fernanda Abreu, que à época estava começando sua carreira solo, cunhou na música Veneno da Lata o termo que já vinha sendo falado popularmente.

Aquele verão marcou a história brasileira, abriu finalmente debate acerca da cannabis no Brasil. Começou-se a refletir a maconha do ponto de vista político-econômico, social e medicinal. O filme Verão da Lata do cineasta Tocha Alves celebrou aquele momento. Wilson Aquino escreveu um livro homônimo contando detalhes de toda história. Ainda artes plásticas, camisetas, teses de mestrado e tudo o mais foi produzido a respeito.

Há exatos 35 anos, o Brasil que se redemocratizava viveu seu verão mais inesquecível. Ingressou a década seguinte pleno de democracia, colocando-se no mapa do mundo e ocupando o lugar que sempre mereceu na Terra. Decaiu recentemente, mas outra estrela para além de um Solano Star está prestes a restabelecer o posto há pouco ocupado com glória e dignidade.

Até hoje há latas por aí, enterradas, esquecidas, ou mesmo perdidas e ainda não encontradas, reza a lenda. Quando você vir algo brilhando nas areias de alguma praia do litoral sul-sudeste brasileiro, preste atenção.

Pode ser um resquício do veneno da lata.

Ouça. Leia. Assista:

Verão da Lata, de Tocha Alves – Vimeo

Verão da Lata, livro por Wilson Aquino – Amazon

Imagens: reprodução