Caríssimos perdedores,
Vimos nesta carta cumprimentá-los pelo 56º aniversário de sua Redentora. A tomada do poder pelos quartéis em 1964, cujo dia verdadeiro é 1º de abril, o Dia da Mentira. Pegava mal, fizeram em 31 de março. Parabéns pelo seu dia! Explico: vocês acham que venceram. Pobres e ingênuos. Perderam. E foi de goleada.
O golpe ao qual os senhores chamam de “revolução” era contra os desmandos da “corrupção”. Pois vejam só: a corrupção só aumentou. Com censura, sem denúncia possível pela imprensa ou concorrência cidadã de qualquer natureza. As empreiteiras fizeram a festa. Superfaturaram tudo. As mesmas empreiteiras de hoje, senhores.
Os senhores eram pelo fim da inflação e pela retomada econômica: perderam. Sob o comando de Roberto Campos e Delfim Neto produziram o milagre brasileiro. Mas bastou a crise do petróleo mundial para que tudo afundasse em inflação e na maior desigualdade do continente. Sem interferência. Era uma ditadura. Perderam sozinhos. Lidem com isso, senhores perdedores.
E o mais engraçado: os senhores perdedores eram visceralmente contra o comunismo. Gritavam histéricos alertas para a “ameaça vermelha” internacional. Vejam só, perderam de novo! Em duas décadas conseguiram a proeza de devolver aos civis um país cujo gigantismo estatal era de fazer corar a União Soviética. Lamento, senhores perdedores. Os senhores nunca foram tão comunistas quanto na ditadura. Foi o mais próximo que a nação já chegou de Stalin. No atacado e no varejo.
Mas, vamos falar dos vencedores. Não “nós os comunistas”, ou “nós da esquerda”. Não. Nós que amamos a democracia e as liberdades como um todo. Nós que brigamos entre nós. E nossos nós desatamos pela via democrática. É que a gente se amarra.
Quem não se lembra da história do “doutor” Roberto Marinho, líder máximo das organizações Globo, sustentáculo midiático de apoio ao golpe, sendo repreendido por um austero general via telefone? “Doutor Roberto, suas empresas estão repletas de comunistas!”. Marinho devolveu: “General, o senhor cuide dos seus comunistas que eu cuido dos meus! Passar bem”.
É que as coisas são assim mesmo, senhores perdedores. Não fôssemos nós, os vencedores, como ficaria a inteligência criativa da televisão, do rádio e da mídia impressa neste imenso Brasil? Quem ia escrever suas novelas, suas reportagens brilhantes, seu programa de rádio? O comercial criativo do intervalo. E que músicas íamos tocar? Vamos combinar que não seria por conta dos senhores e sua vasta ignorância. Não é mesmo, senhores perdedores? Até vossa censura tivemos que enfrentar. O que não nos impediu. Afinal, vossa máquina só funciona com nosso talentoso azeite.
Acho que os senhores têm certa razão quando bradam que o setor cultural e artístico está “repleto dessa gente de esquerda”. É mentira. Há pessoas de todo viés. Isso serve pra Ciência também. Afinal, para vossa desgraça, estamos nas universidades. Liberais, trabalhistas, comunistas, socialdemocratas, até centro-direita há entre nós. Mas é uma gente que não suporta uma ditadura, saca? A propósito, os senhores nunca pararam pra pensar nisso? Por que a parte inteligente da nação está sempre do nosso lado? Francamente.
Nós os vencedores também erramos. Muitos tomaram a via da guerrilha. Contra a ditadura, havia os que queriam a ditadura do proletariado. Uma contradição em si. Conhecemos nossos erros. Lamentamos a empresa de pouca ventura que foi a luta armada. O justiçamento de companheiros. A tortura covarde empreendida pelos senhores, que vitimou a tantos dos nossos, e outros tantos inocentes. Foi uma reação. Fica aqui nossa homenagem aos que lutaram. E a todos os que morreram.
Como disse uma vez Chico Buarque: “a ditadura encheu o meu saco, mas eu também enchi o saco dela”. Agora Chico ganhou o prêmio Camões. O maior da língua portuguesa. Qual dos senhores ganhou o quê, mesmo? Sem ressentimentos, senhores perdedores.
Aquilo que os senhores chamam de “revolução” não parou a verdadeira Revolução. Aquela pela qual o mundo pulsava. Apesar de tudo, nós fizemos o Tropicalismo, a MPB, os melhores discos de todos os tempos e a melhor música do mundo. Com a gente, o samba desceu do morro. Recebemos com generosidade os Beatles e os Rolling Stones. O punk saiu das periferias, o rap das estações de transportes. Empreitamos o teatro mais poderoso e transgressor, bem como o cinema mais alternativo e ousado. E a literatura marginal, e a new wave. As filhas dos senhores adoram nossas canções, nossa dramaturgia, nossa beleza e graça. Nós somos bonitos e bonitas. Pintamos o país em cores vivas, apesar dos senhores. Nós vencemos.
E conquistamos direitos às mulheres (reparem como os chamamos de “senhores”, no masculino), aos pretos, índios, aos gays, excluídos. Não pelos senhores, mas apesar dos senhores. Direito ao sexo! Ao prazer.
Com arte, colocamos nosso país no mapa do mundo, na crença de que não há nada melhor do que sermos exatamente aquilo que nós somos. Nós o fizemos. Apesar dos senhores.
Agora os senhores estão aí, todos pimpões. Adultos, velhos, machos, brancos e patrões. Muitos empregados, claro, escravos da caretice, do preconceito, da estupidez e da própria ignorância. Graças a um governo eleito (viu como é bom?) que envergonha o país aos olhos de um mundo inteiro. Comemorando um golpe mixuruca do qual os senhores se acham detentores do triunfo. Mas acontece que nós vencemos.
Não há alternativa além da ignorância para os senhores. Pois os senhores perderam o lugar nas artes e na cultura, que nunca tiveram. Perderam nos costumes, porque lamento informá-los que ninguém é dono do rabo de ninguém. A guerra contra as drogas é melhor não mencionar. O senhores perderam suas mulheres pra nós. Os senhores perderam todas, senhores!
Hey, losers! O fato é que somos insuportáveis aos seus espíritos fracos. Nosso talento, nossa alegria, o barulho que fazemos. Nosso prazer incomoda. Muito prazer. Continuamos aqui.
Comemorem, senhores perdedores! Feliz 31 de março de 1964. Um brinde. Saúde!
Com carinho,
Os vencedores.
Brasil, 1º de abril de 2020.